sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Crônicas de Uma Criatura de Vidro

Minha visão está embaciada. Por que essas almas dançam tanto? Água, é apenas água sobre os meus olhos vítreos. Formando gotículas de suor, que se juntam em gotas maiores, pesadas demais para resistirem à atração que segura todas as coisas. Elas escorrem formando rios em miniatura, umidificando levemente o solo que me rodeia. Esse solo que me rodeia e que nos permeia, é um solo elevado, é de madeira.

Estou tentando entender o motivo de estarem me alçando e me devolvendo ao solo continuamente, repetidamente. Um som ao fundo se distingue entre tantos murmúrios, entre tantas lamentações dessas distintas almas. Um som que é produzido por cordas.

Passam a mão continuamente sobre os meus olhos vítreos. Passo de mão em mão, sou alçado e devolvido. A água escorre um pouco mais, já quase consigo enxergar. O som continua e as almas dançam. O torpor alcoólico toma conta do ambiente, está impregnado ao próprio ar, o teto sua, as almas dançam.

É tudo tão belo. Quando me alçam, consigo enxergar mais longe, parece que o mundo acaba naquela sacada. Mas não, tem uma rua, não sei o que existe lá, só sei que quase não há mais água. Minha visão já não é mais embaciada, e vejo que as almas que dançam possuem corpos. Me pergunto se não seria o contrário: as almas que têm os corpos, ou os corpos que têm as almas?

As lamúrias são sons um pouco mais distintos, com menos água posso também ouvir melhor, o som se propaga mais facilmente através de meu corpo vítreo. As cordas ressoam no ar, nesse mesmo ar impregnado. Os corpos dançam e eu já não tenho mais água alguma escorrendo pelo meu corpo vítreo. Me sinto deveras mais leve.

Alçam-me uma última vez, e me devolvem vazio ao balcão do bar.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Hospitais

Lembro-me muito bem do dia em que saí de uma cirurgia normal (como se abrir uma pessoa e costurá-la depois pudesse ser algo muito normal), e, ainda grogue pela anestesia, fui colocado sobre uma daquelas frias camas de hospital. Um local de uma brancura alvejante e que me alvejava, me oprimia.

Era um pequeno quarto duplo, parecia ter sido um depósito há bem pouco tempo. Tinha duas camas, bem próximas uma à outra. Como eu só passaria a tarde ali, apenas precisava tomar um soro e comer uma gelatina sem gosto, fiquei na cama mais próxima da porta de entrada e saída. Interessante como uma única coisa pode ter duas funções tão opostas entre si, nos utilizamos do mesmo artefato tanto para entrar quanto para sair.

A enfermeira aparecia vez ou outra, era um hospital tranquilo, nada dos absurdismos das emergências, ninguém vertendo sangue por ter tomado um tiro no pâncreas. Na cama de meu companheiro de quarto, um sujeito acabado parecia moribundear. Estava aparentemente muito fraco, contorcido por supostas dores, enquanto a minha anestesia passava aos poucos, e eu voltava a sentir meu nariz enfaixado e coberto por ataduras.

As primeiras horas passaram sem grandes novidades, nem anjos e nem a safada da dona morte buscando ninguém. Eu começava a ficar ansioso pela aproximação do horário da minha alta, quando o sujeito acorda lentamente de seu sono arrebatador. Ele se senta na cama, com algumas dificuldades, mas sem titubear. Puxa assunto enquanto eu degluto a gelatina insossa.

Voltei para casa naquela noite preocupado com o tanto de pus que vazava do meu curativo. Nada de mais, apenas um fluído corporal indesejado. O sujeito ficara, tinha ainda uma longa recuperação. Sua cirurgia fora muito mais invasiva, ele estava lá pois havia doado parte de seu fígado a alguma pessoa da família, ou coisa parecida.

O branco, a gelatina, o soro. Tenham aberto o teu nariz, ou o teu abdômen, a situação não difere muito. Entramos e saímos pela mesma porta, e ainda há de algum dia voltar, no absurdismo da emergência ou na calmaria do leito. Bom, eu estava em casa, e o sujeito tinha um naco de fígado a menos.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Sobre Voltar

(ou There and Back Again)

Decisão nenhuma é pequena. Uma pequena pedra, atirada nas águas tranquilas de um lago, forma círculos concêntricos que se dispersam continuamente, e podem, dadas as devidas condições, eventualmente tornarem-se tsunamis. Dessa forma, como dito outrora, cada pequena decisão que tomamos em vida ecoa na eternidade.

Acho que, na real, as pessoas nunca voltam completamente quando se vão uma vez. Se voltam, não são mais as mesmas, pois a cada minuto, não são as pessoas mais as mesmas que eram e foram nos minutos anteriores. As coisas mudam, de fato mudam, deveras mudam. Assim são também as pessoas. Dispersar, desaparecer, reaparecer, voltar. Voltar e não ser igual. Voltar e por onde anda.

O que eu sei sobre o passado me diz mais sobre o futuro do que o que o futuro sabe do futuro. Lhes permito que joguem as cartas. O passado sabe do sagrado e do profano porque os viu acontecer. Nem o futuro sabe do futuro. Como você está se sentindo? As pessoas perdem a todo momento as oportunidades de ter e de ser muita coisa grande, perdem a glória por simples medo de arriscar perder o que é medíocre.

Então é assim que as coisas voltam. As pessoas voltam, e elas decidem voltar, não é o futuro que decide por elas. Acredita-se em destino. Dizem por aí que ele de fato existe, que há comprovação científica. Aquela história de prever os movimentos das partículas e saber onde elas estarão. Somos todos partículas gigantes. Totalículas.

Mas voltando, é aqui que elas estão. Sendo as mesmas ou não. Cada pequena decisão que tomamos em vida ecoa na eternidade. Como você está se sentindo? Dizem-me as cartas que está tudo bem. Oras, basta olhar em volta para ver que está tudo bem, porque afinal as pessoas voltam.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Prólogo

A Lua. Essa criatura onisciente. Espectadora pacífica de tudo o que acontece nesse pequeno planeta azul. Com seu distanciamento que a permite visualizar vastas extensões de terras e mares, repletas de coisas vivas e não-vivas.

A Lua. Criatura de face exposta. Apenas uma sempre, é verdade, a outra eternamente escondida de nossos olhos curiosos e imaginativos. Um lado escuro, o outro iluminado.

A Lua. Iluminada e iluminando. Com seu brilho dividido. Parcelado. Em fases. Algumas mais iluminadas, outras menos. Nova, crescente, cheia, minguante. E então novamente o mesmo ciclo, as mesmas fases, o mesmo percurso no céu. O mesmo brilho.

O brilho. Qual brilho é natural? Qual brilho é original? A luz só existe porque existem os olhos para enxergar. Uma superfície que não produz luz reflete luz. A superfície absorve luz e reflete uma parte. A superfície da Lua reflete luz.

A luz. Quem produz sua própria luz brilha mais. Fontes de luz que ofuscam brilhos menores. Que cegam, que maltratam os olhos. São grandezas relativas. A Lua reflete mais luz do que produz.

A Lua. Mero reflexo de fontes de luz mais intensas. Daquelas que cegam. Um brilho parcial, reduzido. Refletido. Ainda assim, luz. Brilho. Ainda assim, ilumina e é iluminada. Ainda assim, Lua.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Everson e Aline

Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?

Everson abriu o diafragma, não quis se levantar
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Aline enchia a cara de cerveja
No outro canto da cidade, como eles disseram
Everson e Aline um dia se encontraram sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer
Uma amiguinha muito louca da Aline que disse
"Tem uma festa no QG, e a gente quer se divertir"
Festa de rock, com gente esquisita
"Eu não tô legal, mais ainda quero mais birita"
E a Aline riu, e quis saber um pouco mais
Sobre o fotógrafo que tentava impressionar
E o Everson, meio tonto, só pensava em ir lá dentro
"Mais uma banda, tenho que fotografar"

Everson e Aline trocaram facebook
Depois se conversaram e decidiram se encontrar
O Everson sugeriu a Yracema
Mas a Aline queria era mais se embebedar
Se encontraram, então, no parque Cachoeira
A Aline de carona e o Everson no carro do jornal
O Everson achou estranho e melhor não comentar
Mas a menina tinha coruja entre os peitos

Everson e Aline eram nada parecidos
Ela era de Áries e ele tinha vinte e seis
Ela trampava na Renner e falava japonês
E ele ainda dando uma de Jão
Ela gostava de desenhar e de anime
De Erne e Harry Potter, Leminski e Raul
E o Everson gostava de séries
E jogava playstation 2 com seu vizinho
Ela falava coisas sobre cultura oriental
Também animes e essas piração
E o Everson ainda tava no esquema
Jornal, rolê com os brother, e televisão
E mesmo com tudo diferente, veio mesmo, de repente
Uma vontade de se ver
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia, como tinha de ser

Everson e Aline compraram um playstation 3
Comiam no Sokulski, e foram pra Caiobá
O Ever explicava pra Aline
Coisas sobre Araucária e as maracutaia
Ele continuou a beber, deixou o cabelo crescer
Mas acabou por cortar (não!)
E ela pra eles comprou
Uma dupla igual de celular
E os dois comemoraram juntos
E também brigaram juntos muitas vezes depois
E ela então um dia foi eleita
A namorada mais legal dos caras da galera

Caricaturaram os brother com desenhos e fotos
E o casal fazia muito sucesso
Ajudaram no URRA!, e mandaram legal
Nos rolês com a nossa galera
Everson e Aline ainda estão em Araucária
E a nossa amizade dá saudade semana sim semana não
Só que esse mês, não vão viajar
Porque o camarão da praia ainda está em digestão
Aa ahá

E quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Feliz Felicidade

Ato 01 - São Paulo em aurora.
Primeira instância de uma sequência de viagens de proporções épicas. De histórias eternas. De momentos de vivência intensa. De momentos de atingir esse sentimento etéreo tão almejado. Sentimento esse que deve não existir enquanto definição exata, apenas existe quando existem momentos como esses, e apenas enquanto ele dure. Sentimento que desejamos e indicamos, e também buscamos, por vezes quase conseguindo tocá-lo.
Assim, chegamos a essa cidade que fica quase bonita quando os raios dispersos levantam entre infinitas toneladas de concretos armados. A uma breve tentativa de fugir do concreto, em busca do abstrato, o sol se levanta numa aura cinza de poeira. Porém, a luz disforme faz dessa cena uma cidade quase bonita, quase atraente, quase calorosa, quase feliz.
Momentos de introspecção, de intro e de especção também. E de realização. Um ano difícil, mas que uma ceia de natal com uma família tão forte tende a facilitar. Primeiro chute nos glúteos de 2013, de agora em diante referenciado como 2 mil e treta, um ano que sequer merece retrospectiva.

Ato 02 - Vinte e quatro horas entre o céu e a terra.
No céu, entre nuvens, entre águas. Na terra, 24 horas depois, entre mares e marés, terras e terra e águas. Semi-Ilha. Superagui não é insular, carrega antes o prefixo "pen". Mas visto do céu, do voo, é apenas um amontoado de terras verdes, não importando assim as conexões marítimas ou terrestres com o continente. Da janela do avião, semi-oval semi-redonda, identificar as formas do litoral, semi-baía semi-estuário. Oras, pois que localização geográfica independe do ponto de vista, é tudo concreto, não importa o quão contrastante isso seja com a beleza do natural.
Partindo da maior cidade de concretos armados de uma América Latina inteira, são 10 horas da manhã e ali estão os rios, baías, estuários, sejam ilhas ou penínsulas de recanto quase intocado, através da escotilha da janelinha do avião. Uma breve pausa em casa, em uma daquelas que podemos chamar casa, para 24 horas depois estarem os rios, baías, estuários, sejam ilhas ou penínsulas de recanto quase intocado, em contato direto com os meus pés.

Ato 03 - Superagui em crepúsculo.
Mesmo somados todos os idiomas, não existiriam palavras suficientes para descrever o quão épico é e foi o pôr do sol de tal semi-ilha. Paletas crepusculares supra-reais, de tantas cores e de todos os tons, de modo que a imaginação não consegue não se perder, ademais ela se encontra. Tudo isso em areias que correm ao vento da mesma forma que corre o próprio tempo. Contemplação, intro e espectiva, nada mais.
Foto: Maruza Silverio
Tantos momentos, que torna-se impossível reencontrar na memória todos os detalhes, sem distorcê-los, sem alterar o passado, quanto mais transferir para quaisquer escreveres. Houve uma união natural formada por laços temporários de necessidade relativa, construída sob moldes de uma família, sobre membros de acampamentos que também podemos chamar casa. Amizades sinceras, divididas na mesa, na panela de lentilha, no copo de summer drinks, e na caminhada pela praia. Houve a presença das dançarinas da alma, as garotas mulheres que bailam ao som do palpitar dos corações ao seu redor, aqui multiplicadas por dois, iluminando a própria luz, com seus quatro sorrisos de uma espontaneidade extremamente sincera. Ainda houve um cão Sábio, que não pode ser nada além de uma alma onisciente presa em um corpo que não o pertence.
Houve uma ceia, uma ida à areia, queima de fogos, estouro e preparação de bebidas. A saga de anoitecer e morrer todo dia, todo ano. Se cada dia perdido é uma chance desperdiçada, uma nova morte, entremeada de infinitas vidas, é também um novo começo, entremeado de outras tantas infinitas vidas, de outras tantas e das mesmas possibilidades.
E então vem a chuva, 15 minutos depois da meia-noite, como se apenas estivesse esperando o espetáculo terminar para trazer seu próprio show. Como se quisesse com muita água apenas levar 2 mil e treta e trazer 2014, de agora em diante referenciado como 2 mil e catarse. Houve corridas e danças na chuva, que serviram deveras como lavadoras da alma, e aí já era 2 mil e catarse.

Epílogo - Araucária em madrugada.
E a felicidade de sempre. Ou de quase nunca. Dos momentos lembrados enquanto a Lua alvitra estradas no céu. De volta ao que se tem, ao que se espera, ao que me espera. Anoitece no dia, é manhã do ano, e a vida não pode ficar pra depois. Um êxtase de quase-felicidade, sentimento tão desejado e indicado. Depois de alma lavada, de viagem conclusa.
Que as coisas boas que existem nesse mundo existam sempre. Pelo menos enquanto as tivermos. Fica para trás 2 mil e treta. Começa então 2 mil e catarse.