terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Café com Leite

A inocência nossa de cada dia, tomada no café da manhã. Houve um tempo em que observamos as andorinhas com extrema sabedoria, entusiastas da ornitologia amadora. Elas vinham pelo início do verão, aves migratórias, quem disse, voam para o sul, pensando na volta ao norte. Elas cagavam pela praça inteira, mas quem liga, voavam baixinho, quase acertando as nossas caras. Mas ornitologávamos, tomando um sorvete, falando com as andorinhas.

Nunca gostei da palavra amador(a). Amador(a) parece adjetivo para quem ama, porém carregado de um significado negativo. Amar é positivo, e pólos opostos se atraem. A ciência do magnetismo sempre falhou ao explicar o amor. Quem disse que os opostos se atraem estava no ramo do conhecimento errado. Que aprenda a construir bússolas imantando agulhas que boiam enfiadas em rolhas de garrafa de vinho. É tudo o que esses magnetistas amadores que não sabem amar podem fazer.

Somos rochas metamórficas, eu disse, alguém contestou, somos ígneas. Ninguém é sedimentar. Estamos sempre começando, mudando e começando de novo. Agora estamos marcados em nós mesmos. Para sempre. A primeira é branca, como dizem as brincadeiras de criança. Saudosa infância, quando amar e metamorfosear era mais fácil. Que o digam as andorinhas.

Café com leite já foi sinônimo de inocência. O yin yang da gastronomia. Da inocência nossa de cada dia, tomada no café da manhã. Café com leite está em tudo. Já foi adjetivo-substantivo geopolítico, versava sobre a concentração do poder social e econômico. Injusta a associação com o amadorismo, com a inocência. Injusta a depreciação, associação negativa.

Café com leite é positivo. Diferente do magnetismo, café com leite atrai quem ama. Atrai quem voa. Atrai quem rocha. Somos rochas metamórficas, eu e minhas rochas marcadas em mim, marcados juntos com animais antropomórficos. E um humano. E voamos como as andorinhas, voamos rochas. Sou café com leite, e isso nada tem a ver com inocência.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Um Amor da Minha Vida em Cada Esquina

Venho escrevendo pequenos textos em prosa poética sobre as minhas paixões. Sobre essa necessidade que tenho de me apaixonar o tempo todo. Esses textos devem eventualmente se aglomerar em um livro ou coisa parecida.

Já há algum tempo digo que paixão é uma força da natureza. É como essas tempestades fora de controle, como as florestas e os mares, o fogo e o ar, a terra e as forças vivas, entidades animalescas dentro de nós. A natureza sempre proporcionou as melhores metáforas, analogias e digressões à literatura. Delas venho fazendo uso.

Mesmo que nada disso seja novidade, se apaixonar também não o é. Vivo minha vida colecionando paixões, como muitos outros assim o fazem. As breves e as intensas, as platônicas e as eternas. Gosto de todas elas, e faço intensidade de todas elas, já disse que não aceito o que não for intenso.

Gosto de transformar toda essa infinidade de paixões em amor, mesmo que já tenhamos versado repetidamente sobre o contínuo mau uso desta palavra. Mas já há muito tempo que não sinto também aquela arrebatadora, a conhecida revoada de borboletas no sistema digestório.

A amplamente divulgada teoria dos seis graus de separação nos deixa em contato próximo com qualquer pessoa do mundo. E Bukowski já dizia que é impossível dizer que se ama alguém, tendo tantos milhões de pessoas no mundo que você provavelmente amaria mais se simplesmente as conhecesse.

Mas todos sabemos que não é tão simples assim. Amor não se pesa, paixão não se mede, não se compara. Não há régua nem balança, ou qualquer forma de equiparação, de dizer que gosta mais de um do que de outro. Gostar é simplesmente gostar. Apaixonar-se é simplesmente se apaixonar. Ao mesmo tempo, é também muito mais do que isso.

Cultivo esses amores. Espalho-os por aí. Vivo todos eles na medida do impossível. Reciprocidade nunca foi necessidade. O importante é sentir, é a única forma de estar vivo. Paixão é uma enorme força da natureza, e eu adoro ter um amor da minha vida em cada esquina.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Intensidade

Ontem, chorei. O que, sendo uma criatura da água, é extremamente comum e natural. Por aqui, o sentimento verte líquido sempre. Desce rolando pelas faces, vindo de bolsões d'água escondidos junto da porta escancarada da alma, que se abre ainda mais com a força dessas águas levemente salgadas.

Essas lágrimas que desceram não estavam ali por excesso de tristeza ou melancolia, não naquele momento, embora boa parte das vezes em que o sentimento verta líquido sejam essas as fontes de sua fluência. As águas desceram alegres, como no experimento em que alguém descobriu existirem moléculas felizes e moléculas tristes.

Mesmo assim, a melancolia estava lá, como uma música de fundo, o som ambiente. Na verdade mesmo, ela nunca me deixa, é como o cantar dos passarinhos pela manhã, o barulho dos carros ao longo do dia e o frenesi sonoro dos grilos à noite, ou seja, é um som que sempre esteve lá e sempre estará.

Nos últimos dias, estive diante do mar. Preciso estar diante de Poseidon frequentemente, diante de Iemanjá, de Nereu, Sedna, Ulmo, Netuno, Aegir, e de todos os outros seres que ali vivem e governam. Lá, cogitei a essência da existência física do mar: seria ele uma única criatura, composta por todas as águas do planeta como um único corpo?, ou seria a junção das várias e praticamente infinitas gotas d'água e criaturas que o compõe e o habitam?. Não tive coragem de cogitar sobre a essência de sua existência metafísica.

Qual a essência da nossa existência física? Somos nosso corpo fechado dentro de si, isolado dos outros corpos? Ou somos a junção de todas as pessoas que nos importam e fazem a mais incrível diferença em nossas vidas? Somos uma gota d'água ou somos um oceano inteiro? Lá, diante do mar, eu me sentia todos os outros. Sentia-me as pessoas que estavam lá comigo, criaturas maravilhosas de brilho em essência. Todos de existência individual, mas que em coletivo formávamos um oceano imenso e intenso.

Por fim, eu quero explodir de tanta existência! Não cabe mais dentro de mim o acúmulo de tanta intensidade. Só quero para a minha vida gotas d´água que sejam comigo oceano, só quero o que seja intenso, vívido. Quero mais desses momento que dilaceram minha alma de tanta alegria. Ontem, chorei. O sentimento líquido levemente salgado procurava o oceano, procurava esses últimos dias, em que vivi com a intensidade que só pessoas-oceano podem proporcionar.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Tóxico

Uma das maiores mentiras que nos fizeram acreditar é a máxima de que o mundo não gira em torno do seu umbigo. Bom, ele gira sim. Cada pessoa tem um mundo para si, translacionando bem aí em torno do seu umbiguinho.

Cada pessoa é um mundo, agregados de mundos formam sistemas solares, galáxias inteiras. Cabe a cada um desses mundos cuidar de si, prezar pela sua saúde interna e externa. Cabe a cada um de nós evitar o fim de seus mundos de todas as formas que lhe forem possíveis.

Vez ou outra, ocorrem choques de mundos. Encontros devastadores, pelo bem ou pelo mal, afinal uma devastação é também uma oportunidade de nascer de novo, de recomeçar. Esses choques resultam dos encontros, e deles resultam outros encontros, como se vivêssemos em uma colossal mesa de bilhar onde os mundos ricocheteiam nas paredes e uns nos outros eternamente.

São tantas as possibilidades. A rede de conexões é infindável. Mas um mundo sozinho é uma coisa bem triste. Assim como tristes são as estrelas do céu. Nessa metáfora reutilizada, cada um de nós tem também suas estrelas, seus mundos brilhantes. Aquelas que giram conosco em piruetas mais bonitas.

Nessa miríade de planetas, de mundos, a sensação de estar sozinho em translação é recorrente. Mesmo em órbitas compartilhadas, mesmo sendo binárias, até trinárias, as vezes estamos sozinhos. Mas cabe a cada um desses mundos cuidar de si, certo? Prezar por si, como mundo alheio algum poderia fazer.

A cada um de nós cabe aproximar mundos que te fazem sentir bem. Mundos positivos, mundos de carinho, de afabilidade. Afastar mundos tóxicos, poluídos, destruídos por anos de maus tratos por parte de seus habitantes. Por anos de translações errôneas. A cada um desses mundos, cabe escolher com quem compartilhar as suas órbitas.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Sobre a Força

Outras vezes, precisamos nos empenhar em demonstrar uma força para além daquela que temos.

Sinto constantemente uma sensação de assuntos inacabados, de que poderia iniciar uma conversa qualquer com qualquer pessoa pelo final da última conversa que tivemos. Sinto que nunca teremos tempo de terminar todas as conversas. É como se elas morressem inadvertidamente e se encaminhassem para uma espécie de limbo dos assuntos, um lugar sombrio onde todos os assuntos inacabados ficam esperando sua conclusão.

Como eu vinha dizendo, deixei essa casa vazia por um tempo. Agora me falta tempo para tanto assunto. É tanta coisa que acontece e a gente não tem tempo de transformar em literatura, é tanto dia que foi poesia por si só e a gente nunca consegue colocar isso em um lugar palpável.

Venho escrevendo sobre as paixões. Sobre todas elas, as fugazes prioritariamente. Algumas são fugazes mais de uma vez, são reincidentes. E são todas poesia por si só. São retratos que não se pendura nas paredes dessas salas vazias, vão parar em alguma gaveta. Arrastam, elas também, correntes.

São elas uma espécie de força. Como eu disse para mim mesmo: não é um projeto para exercitar a escrita, como insistem nessa necessidade aqueles seres prepotentes que se auto-intitulam escritores, escrever todo dia não faz nada de ninguém; é sim um projeto para exercitar as paixões, essas sim precisam ser sentidas todos os dias.

Outro dia, senti uma fraqueza pulsante. Na verdade, isso sim é imutável. Essa fraqueza que pulsa junto com meu coração. Palpita em cada artéria desse corpo. Mas quem está autorizado a senti-la? É na nossa ilusão de força que podemos fazer um pouco de bem para quem nos cerca. Quantos "me ajuda" você já ouviu e quantos você já falou? A maioria deles vem codificado.

Mas de vez em quando é preciso desmoronar. Rasgar as paixões do papel. E chorar. Quem estava lá da última vez que você chorou? A força está mitificada no corpo que é o último a parar de dançar pela manhã, naquele que sempre ouve e pouca ajuda pede. Isso talvez não seja mais do que inércia.

Agora, o que não podemos fazer é parar de dançar. Parar de paixões. Parar com essa força falaciosa. Não podemos. Afinal, é de tanto mentir que somos fortes que podemos enfim acabar acreditando, e sendo mesmo. Continuamos esse assunto outro dia.

Tomando Uma Cerveja com a Morte

Faz calor depois de muito tempo de inverno. As coisas estão mudando. Mas as coisas estão sempre mudando nesse universo que por muito tempo se pensou imutável. É aquela história da vida como um passeio de roda gigante: em um momento, estamos lá no alto, presenteados com uma vista maravilhosa das coisas mais belas já criadas; então descemos para que o outro lado suba.

Há algum tempo, esse blog andava inabitado. Alguns fantasmas certamente continuavam circulando por aqui, mas nada daquele salão de festas sempre lotado, com as pessoas andando por aí com suas taças na mão. Taças não, porquê aqui nós bebemos direto da garrafa. Porém, inabitado não significa não visitado. Que o digam as criaturas que sempre invadem as casas mal-assombradas do bairro, para tirar a limpo a história do fantasma que arrasta correntes na madrugada.

Creio que o silêncio daqui nada teve a ver com o inverno, nem com as coisas estarem mudando. Provavelmente mesmo ele não teve motivo algum, ele só foi. Perdemos tempo demais tentando entender a razão das coisas que simplesmente são. Talvez agora eu expulse os espectros e retome para mim o controle desse lugar. Controle não, porquê aqui nós vivemos direto, sem amarras.

Há muito tempo, sei que Thanatos é meu amigo e anda ao meu lado. Já falei dele por aqui várias vezes, nas épocas das grandes celebrações. Nos últimos dias, senti a presença dele de maneira bem marcante. É uma sensação intrigante: sentir-se tão próximo daquilo que tanto buscamos evitar. Mas eu já sei também há muito tempo que ele vai me avisar antecipadamente quando precisar me buscar. Estou sempre preparado para sua ligação.

Tomamos uma cerveja juntos, reclamando do calor, e eu sabia que ele sim tinha muito a ver com várias das mudanças. A primavera se transfigura de vida, mas ela tem muito de morte também. Todos sabem que todo fim representa muito de um novo começo, não preciso falar disso. A morte é necessária para a própria essência da vida.

Tomamos essa cerveja, e tudo bem. Cada um para o seu lado, nos veremos novamente outra hora. Esse é um encontro que perdura na pele, e ainda poucos dias depois sinto a presença por aqui, está ao meu lado nesse momento, mesmo não estando. Apesar disso, sei que isso logo passa, que a roda gigante sobe, e que vista maravilhosa!

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Origens

A história da vida não começa no momento do nascimento. Muito menos no momento da concepção. Estão todos errados. Uma vida começa muito antes, tão antes que é impossível rastrear tamanha ancestralidade. A vida começa, talvez, no início de tudo. Cada vida começa no início da vida.

Uma parte dessa vida pode ser rastreada. É a chamada ascendência parental em linha reta. Em primeiro grau pai e mãe; em segundo grau, avôs e avós; terceiro grau bisavôs e bisavós. E assim, sucessivamente. A origem da tua história.

Esse séquito de ascendência aumenta em progressão geométrica. Aumenta tanto, que em algum momento do passado, todo ser humano existente ou existido no planeta acabará sendo parente distante de qualquer outra pessoa. Bonito no papel, material para músicas que preguem a paz e a unidade entre os povos.

Entretanto, como dito, é impossível rastrear tanta ancestralidade. Mas é possível voltar um pouco nessa história. Vasculhar não só a linha ascendente, mas também a chamada colateral: primas, tios, meia-irmãs, e toda essa outra proporcionalmente irrastreável quantidade de pessoas que fazem parte da sua origem.

Ao visitar o interior uma vez mais, tive contato com tanta gente que nem me lembro. E com gente que nem existia em minha memória para lembrar. Pessoas que compartilham de algumas informações no DNA comigo, informações que dizem que elas possuem uma ligação irrevogável comigo.

Uma ligação eterna. Mesmo que, na prática, no dia-a-dia, na convivência, eu não acredite na obrigatoriedade dessa ligação. Como qualquer partícula de matéria, devemos apenas manter ligação efetiva com as partículas que são de nosso interesse. Não crio vínculos que não tenho interesse em manter. E uma vez desfeito um vínculo ancestral de maneira benéfica, não vejo sentido em manter por manter.

Uma vida é construída como um solo. Cada marca de seu passado é um substrato geológico. É, às vezes, preciso cavar muito em uma história para compreender um presente. Outras vezes, um simples passeio pelo interior pode ajudar, pode desvendar algumas coisas e abrir alguns horizontes. Mas é muito bom conhecer a tua origem.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Vendendo Minha Alma pela Minha Carreira Política - Capítulo 3 - Trampolins

Um trampolim para pular na piscina de dinheiro!

O impulso necessário para o salto tão aguardado. E os Tios Patinhas dos nossos tempos, com seus ternos de mergulho, caem de cara no dinheiro. É o que importa, a piscina aquecida, o fluxo sempre constante, trocar essa água sem interrupção. Que venha sempre mais!

Mas o que usar de trampolim, como fazer essa corridinha horrenda até a beira da piscina e ser autorizado a aproveitar o seu conteúdo? Preciso me fazer conhecido. Ocupar cargos eletivos menores, naturalmente. Sim! Ser eleito por uma pequena parcela dos eleitores, é o primeiro passo para ser eleito pela parcela maior.

Escolas. ONG's. Conselhos. Associações de moradores. Clubes. Grupos organizados. Uniões de estudantes. Associações comerciais. Grêmios. Qualquer coisa serve! É começando de baixo que se cresce.

Você pode começar como o limpador da piscina. Ou a pessoa que limpa o chão em volta dela. É possível ser apenas aquele que fica olhando por sobre a cerca, não convidado. E a vontade de pular vai aumentando. Quem não gostaria de provar aquela água tão agradável?

Use o trampolim!

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Vendendo Minha Alma pela Minha Carreira Política - Capítulo 2 - Pregão

Quem dá mais?! Para qual partido político devo migrar? Gostaria de filiar-me ao partido que melhor levanta as minha bandeiras. Cuja ideologia mais se assemelha às coisas em que acredito. Deve haver algum, entre a miríade de partidos em nossa super-democracia, cuja premissa ideológica seja algo com que concordarei plenamente.

Porém, não! Vou escolher o partido baseado em representatividade política. É claro! Por que eu me filiaria a um partido minúsculo, que não tem chances de ganhar nada? Ou, caso algum figurão daquele outro partido queira me cooptar, vamos lá! Afinal, mesmo que não seja eleito, alguém lá será, e algum cargo na administração eu terei!

E não é assim que funciona desde sempre? Vice do meu vice. Minha alma está para leilão. Venderei para a melhor proposta, naturalmente. Ninguém mais se importa com ideias, deixemos isso para os românticos. Em se tratando de carreira política, fazemos pregão. Quem gritar mais alto no mercado de almas, tem mais chances de se posicionar bem no draft dos políticos.

Após a escolha muito bem pensada do partido, devo agora preparar-me para as coligações. Claro, pois nossas bases ideológicas são semelhantes, não são? Não? Oras, não importa, juntos podemos vencer aquele filho da puta que também se candidatará.

O que importa é a soma de nossos números, não de nossas legendas. Siglas são apenas letras amontoadas. Sem significado. Sem valor. Tenho certeza que nossos fundadores escolheram palavras arbitrárias. Usemos social, trabalhador, cristão ou democracia no nome, e já temos milhares de seguidores automaticamente.

- Pré-candidato a vereador, tradição no comércio, muito conhecido! Quem dá mais?!

- Pré-candidato a deputado, já ocupou cargos municipais, grandes chances! Quem dá mais?!

- Pré-candidato a qualquer coisa, famoso na internet ou na TV! Quem dá mais?!

- Ex-governante, querido em várias camadas da sociedade! Quem dá mais?!

- Candidato a prefeito procurando um vice! Quem dá mais?!

O tempo está se esgotando. Batam o martelo.

domingo, 29 de maio de 2016

Vendendo Minha Alma pela Minha Carreira Política - Capítulo 1 - Como Tudo Começa

Poucas coisas por essas terras parecem render maior status social e proveitos econômicos do que um cargo eletivo em órgão da administração pública. Talvez apenas o cargo de ex-BBB ou de apresentador(a) de programa de auditório, jogador de futebol talvez.

Mas a grande briga mesmo, o maior vestibular de nossos tempos, se concentra em tentar cooptar uma vaga no executivo ou no legislativo. Para isso, como em qualquer método seletivo, as pessoas fazem uso das armas que possuem. Alguns estudam, alguns colam.

No entanto, existe uma diferença crucial neste método seletivo: você é selecionado não pelas suas habilidades lógico-cognitivas, mas sim pela sua capacidade de convencimento. É como se no vestibular para a universidade você precisasse convencer o fiscal de prova que merece a vaga mais do que os concorrentes.

Eis que para se tornar vereador ou prefeito, deputado ou governador, senador da nação ou presidente (isso sem entrar ainda nos âmbitos eletivos das administrações menos amplas, os trampolins), a pessoa está disposta a abdicar da moral e da ética para conseguir o que almeja.

É assim que a carreira política é, em termos gerais, um imenso mercado de almas. As que não nasceram corrompidas, corrompem-se assim que decidem fazer parte da brincadeira. Claro, há várias delas que conseguem passar incólumes pelas eleições e pelos cargos que por ventura venham a ocupar, porém sequer se tratam da maioria.

Acontece que esse padrão comportamental é o oposto do que deveria ser. Líderes deveriam ser íntegros, figuras a serem admiradas. Então o cidadão comum, aquele que nunca pensou em se candidatar, se revolta e decide fazer parte do vestibular, porque ele sim é íntegro e pode vir a ser alguém a ser admirado. Ele tem a resposta!

E então ele vende também a sua alma pela carreira política.

Continua...

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Auto-Consciência do Tempo

Toda criatura constituída em três dimensões possui uma auto-consciência espacial. Mesmo os seres unicelulares mais simples são capazes de compreender o seu próprio tamanho e saber da sua localização. Todo ser vivo sabe que existe por se colocar em um espaço. Um animal sabe onde termina o seu próprio corpo e começa o próximo. No toque, no equilíbrio, no tato. A pele que roça, o chão e o céu em seus respectivos lugares. A dor ao entrar em contato com algo pontiagudo, quente ou frio demais, lacerante.

Todo ser vivo que existe e já existiu nesse planeta, e se locomove de algum jeito, sabe onde está e para onde precisa ir. Distância, tamanho, largura, profundidade. Conceitos relativos para cada criatura, perspectivas diferentes, mas conhecimentos essenciais para o funcionamento da vida. A auto-consciência espacial faz parte de todos os seres vivos.

Contudo, há uma outra auto-consciência, relativa à quarta dimensão, que apenas os seres humanos visualizam em sua abordagem com relação ao mundo. Trata-se da auto-consciência temporal. Não falamos de espaço-tempo, que é um outro conceito, utilizado em perspectivas maiores. Falamos do tempo como unidade básica, com suas próprias dimensões: antes, agora e depois.

Naturalmente, podemos aplicar vários dos mesmos conceitos do espaço para o tempo, como distância, tamanho, e quando começa e termina um determinado momento. O tempo é também uma dimensão. Porém, o problema dessa auto-consciência, e a diferença entre as duas, é que é ela que gera uma espécie tão transtornada e complexada.

A culpa de não aproveitarmos o agora como deveríamos vem da nossa auto-consciência. A própria existência de conceitos como antes e depois nos prende invariavelmente a eles, prejudicando a nossa experiência com o agora. Há o lado bom, planejamos e executamos, a sociedade evolui e contabilizamos essa evolução. O lado ruim, no entanto, é muito mais evidente. Sofremos por um passado que para os outros animais não existe; e deixamos as coisas para um depois que nunca chegará.

Com isso, não aproveitamos o momento. Vivemos vidas vazias de agora, mas cheias de antes e depois. Fotografamos um acontecimento para que depois lembremos do passado. Há que se viver mais no âmbito do agora. É preciso deixar de lado essa auto-consciência temporal que permeia nossa espécie, pelo menos de vez em quando. Precisamos passar mais parte do nosso tempo vivendo de verdade esse tempo que estamos vivendo. Não o antes ou o depois, mas sim o agora. Porque é o agora que importa.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Não-Pertencimento

O sentimento de não-pertencimento é muito mais forte e destruidor do que qualquer sensação de pertencimento.

Pertencimento não está ligado somente ao espaço físico onde se vive, onde se trabalha ou no local de lazer frequentado no domingo a tarde. A sensação de pertencimento está muito mais conectada a uma relação mútua entre o ser e o ambiente, expressa não só pelo espaço físico, como também pela aceitação em determinado grupo ou padrão, ou por se sentir como um igual aos que o cercam.

De qualquer forma, é fácil pertencer. Basta qualquer sensação em comum, qualquer necessidade do ser satisfeita pelo meio. Mesmo um pequeno detalhe pode ser suficiente para uma pessoa se sentir completamente pertencente a um local ou a um grupo.

O problema está no não-pertencimento. Em não se encaixar em absolutamente nada. Sente-se uma constante e inexplicável ansiedade, vinda de lugar nenhum e que leva a lugar nenhum também. O não-pertencer gera uma sensação muito mais acachapante do que qualquer orgulho por pertencer. Dói não-pertencer.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Morrer

Não há forma melhor de morrer do que vivendo.

Não há forma de eu me acostumar com a vontade que algumas pessoas têm de morrer durante o sono, sem dor, deitadas tranquilamente em suas camas. Acho uma morte patética, destituída da grandiosidade que a vida por si só já merece. Morrer é parte do viver, é consequência, resultado. E uma morte deve ser o reflexo de uma vida.

Quero que o meu corpo exploda em um milhão de pedacinhos no meio da avenida. Quero os detritos da minha morte espalhados, denunciando para o mundo inteiro a minha vida. A dor não importa. Essa dor será temporária, ela é a derradeira, depois dela nada mais há. O não-sentir será completamente tomado por uma enxurrada de glória.

Quero saber que estou morrendo. Sentir a foice do ceifeiro e saber onde ela arranha. Preciso ver enquanto houver olhos, ouvir até o fim dos tímpanos, tatear com cada centímetro quadrado de pele o local do fim de sua própria existência. Saberei o momento exato do último palpitar do músculo cardíaco, sentirei a última lufada de ar a sair dos pulmões e a última sinapse a cruzar essas onda cerebrais. Quero sentir o último fio de consciência se esvair, e saber que aquele é inevitavelmente o fim.

Mas é o fim de algo memorável. Mesmo que depois não haja memória. Não importa. A morte só precisa ser reflexo da vida. Quero morrer em uma explosão de grandiosidade, quero deixar meus resquícios em manchas que incomodem os produtos de limpeza e as lembranças por muito tempo. Quero morrer em vida, vivendo-a, não após ela. Porque não tenho medo de morrer, mas tenho um medo gigantesco de não viver.

terça-feira, 1 de março de 2016

Sobre Olhar Para o Vazio

Acho incrível como uma pessoa pode ser a pessoa mais importante da sua vida durante um determinado período de tempo e, de repente, sem mais nem menos, um tempo depois você não sabe mais absolutamente nada sobre ela.

Todas as pessoas que conhecemos funcionam como ondas sonoras em nossa alma. Algumas são lindas músicas, outras são o barulho da maquininha do dentista. Mas todas elas marcam a nossa existência de alguma forma, e, dependendo do volume e da intensidade de sua presença, podem ficar ecoando dentro de nós por muito tempo. Reverberando nas paredes, o som dessas pessoas vai e volta, se torna apenas um leve ruído de fundo e então volta em um barulho ensurdecedor.

Somos como imensos galpões vazios, ocupados apenas pela poeira e pelo som, onde todas as pessoas são ecos em nossa alma. Cada um desses sons chega um dia ao seu final. Vai aos poucos morrendo, se apagando em um fade out imperceptível até que não nos damos mais pela ausência daquele som. Ou então desaparece de uma vez, como um aparelho subitamente desligado da tomada.

De repente o eco volta um dia, sem mais nem menos, com força total, como um grito rasgando todas as gargantas. E você para para ouvir aquilo, e percebe que é um som antigo, um barulho atrasado, mesmo que seja ainda daquela linda música. E você quer apenas sentir o som e apreciar aquelas ondas de uma frequência que acalentam a tua alma. Mas é uma música antiga, que já foi ouvida, e a música nova não existe mais.

Quando paro a olhar para o vazio, estou apreciando esses ecos da antiguidade. Observo com olhos o que apenas o ouvido pode ver. Procuro calma dentro do meu galpão. Tento ver o que só se pode ouvir. Olhar para o vazio é um ato de prescrutar não só as ondas de luz, como também todas as outras vibrações: as vibrações do ar que fazem o som. Quero ver esses ecos, saber onde eles estão, quando vão e quando voltarão. Quero ter aquelas lindas sinfonias presentes, mesmo que em um eco arcaico da memória.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

En El Uruguay, La Gente Está Muy Loca

Choveu miseravelmente durante os dois dias em que estive em Ponta do Diabo. A Ponta do Diabo é o que os uruguaios chamam de Punta del Diablo. Gosto dessa tradução porque parece que estamos falando da pica cabeçuda e veiúda do próprio Diabo. Outro dia, fiquei sabendo que todo pinto é diferente. Cada qual tem as suas especificidades muito características. Como uma impressão digital, não existem duas picas iguais. E também não há duas bucetas iguais.

Parei para imaginar se Deus limpava a bunda direitinho. Acho que quando você é Deus não deve ter muito tempo para ficar limpando o rabo minunciosamente, esfregando o papel higiênico em cada ranhura do cu à procura de algum resquício de bosta. Provavelmente ele apenas dê uma limpada geral e deixe para resolver o resto da situação mais tarde, no banho. Mas isso é apenas uma conjectura. Afinal, ninguém deseja sofrer as consequências a longo prazo por não ter limpado o rabo durante a vida.

Ficou chovendo durante os dois dias em que estivemos lá. Era um tempo fechado, sem a menor intenção de melhorar. Na verdade, não ficamos dois dias, foi uma noite cercada por um final de tarde e um início de manhã.

Mesmo com esse problema climático, o lugar estava ótimo, a bebida era barata e consegui, na nossa última noite no estrangeiro, deixar meu suco gástrico naquele país. Passei a madrugada vomitando a tequila que bebemos. Ali, estabeleci a meta de não vomitar mais do que uma vez por mês ao longo dos próximos anos. Chega uma hora em que um sujeito cansa de ver os seus restos alimentares interiores se estrebuchando e saindo por onde deveriam entrar.

***

Alguns dias antes, acabávamos de cruzar a fronteira. Acho um absurdo que as pessoas construam aduanas e proíbam as outras pessoas de atravessá-las simplesmente por terem estado a vida toda delas do outro lado. Como se as pessoas dali não cagassem também.

Carimbam papéis, atestam documentos, olham para a tua cara suja e cansada a verificar se aquela foto ali é você mesmo. Se eu fosse um ladrão de identidades, um falsificador ideológico, a última pessoa com quem eu me pareceria seria eu mesmo.

Em último caso, até aceitam uma propina. Pedem, muitas vezes. É possível comprar qualquer sujeito, todos têm seu preço, não importa a moeda corrente: dólar, peso ou real. “Só não aceitamos o euro, o que eu faria com essa porcaria?”.

Compraria uma pessoa, eis o que eu faria. Pronto!, agora você é meu, atravesse a fronteira e grite que são todos uns pendejos. Cumpram minhas ordens e todos serão poupados. Talvez Deus tenha até bicho carpinteiro, só assim para que ele tenha essas ideias.

No final das contas eram todos uns pendejos e umas pendejas mesmo. Atravessamos diversas fronteiras, a maioria delas municipais ou estaduais. Mas quando foi preciso confrontar nação contra nação, duas vezes correu tudo bem, apesar de que na primeira nem sabíamos o que viria a ocorrer em qualquer das possibilidades; ninguém nos parou. Na terceira vez deu tudo errado. Pouco importa: en el Uruguay, la gente continuaba muy loca.

***

É preciso prestar mais atenção quando não se está em território conhecido. Todos acabam sendo vítimas; ao menos acreditam que são. Todos são bandidos também. Há um pequeno assassino preso em cada mente, matando o nosso tempo. Quando se está no estrangeiro, não há também que se perder tempo.

Mas há que se tirar um tempo para dormir. Os carros do outro lado da rodovia nunca sabem quem sofre mais, todos são a maior vítima do mundo e os outros motoristas, esses sim, são uns pendejos. Mas se ninguém errasse, ninguém morreria. Oras, todo mundo precisa de um saco de pancadas, só evitem as colisões frontais. Evitamos todas elas, e cá estamos: vivos.

Nas rodovias, revoltosos. Nas ruas, os malucos. “Esto habla dos idiomas: español y mierda!”. Pelos vistos, por quase comprovação empírica de estudo social de massas, essa é uma situação recorrente.

Distribuímos cigarros e visitamos um cassino. Não daqueles suntuosos templos de adoração jogatinesca, onde o Diabo certamente ficaria de pau duro. Apenas um casarão com tapete empoeirado e máquinas programadas para tirar as moedas de velhos e velhas claramente desacorçoados com a vida que levaram. Suas caras sujas e cansadas dariam a entender que foram expulsos de todas as fronteiras que já tentaram atravessar nessa vida.

Ao contrário do que todos pensam, é preciso muita coragem para se tornar um velho que desistiu de tudo. Há poesia também na derrota.

***

As pessoas falavam diversos idiomas, e, quase sem exceção, todos se entendiam. Há algumas línguas que são universais. O querer se comunicar é uma delas. Conheci muita gente que estudou comunicação durante anos e ainda não aprendeu a falar. Balbuciam monossílabos manhosamente, na esperança de conseguir aquilo pelo que ainda não têm capacidade de lutar.

Na Província Cisplatina, conheci muita gente que nunca esteve em uma aula sequer relacionada à comunicação, mas é capaz de humilhar comunicacionalmente qualquer um. O meio e a mensagem que ardam nas chamas do inferno, a comunicação se dá entre seres humanos, e disso não há teoria que dê conta. Na verdade, essa parte do texto devo certamente suprimir na versão final. Não se fala de comunicação a comunicadores, são todos uns traumatizados.

Entre filhos da puta, pendejos, cabrónes, assholes, schwanzlutschers e ainda outros mais, acabamos globalizando um pouco mais o nosso léxico de pessoas.

É como se as pessoas pudessem ser colocadas também em um dicionário. Claro que não seria simples defini-las, mas elas viriam com o nome de batismo civil, classe gramatical a que pertence (diferente da definição de gênero, vejam bem, verbo nenhum é feminino ou masculino), e uma ou mais breves definições, resumidamente. Haveria também um exemplo de aplicação na frase. É sempre possível aprender uma pessoa nova.

Aprendemos um dicionário inteiro de pessoas nas estradas. Praticamente um desses idiomas modernos, as pontas dos galhos nas árvores pictóricas que começam lá na Torre de Babel, e são formados por um pouco de cada outro idioma. A globalização está aí para isso.

Conta uma antiga lenda que um dia Deus e o Diabo se encontraram para jogar uma partida de Batalha Naval. O Diabo resolveu tirar um sarro de Deus e inventou um novo idioma para confundir seu adversário durante o jogo. Cada vez que o Coisa-Ruim ia escolher uma coordenada para lançar sua bomba, falava uma coisa ainda mais sem sentido do que a anterior. O Todo-Poderoso começou a ficar muito puto e jogou a brincadeira para o alto, mandando tudo à merda. Talvez o Cão até estivesse tentando provar alguma coisa sobre a Ira e aquela baboseira toda, mas o fato é que ficaram sem se falar por mais alguns séculos.

Na verdade, acabo de inventar essa lenda. Quem não gostou, que pare a leitura agora e vá para o Diabo que o carregue. Ou para Deus.

***

Quando arranjamos confusão lá, ninguém entendeu. Provavelmente porque brigávamos em português. A garçonete queria derramar café em todo mundo; é o sonho de toda garçonete antes deslumbrada e hoje frustrada. A vida não vai para frente pra ninguém. E nem adiantava pedir a ajuda divina, Deus estava cagando. Espero que ele tenha limpado a bunda dessa vez.

Saímos de lá sem pagar, não que isso nos orgulhe, mas precisava ser feito. Um cognato que em português é substantivo, em espanhol vira verbo fica muito difícil de traduzir, e de calcular também. Cambiar é uma coisa difícil. Não que isso nos orgulhe, mas há festas e festas.

Em outra, subimos em cima das mesas. A calçada estava tomada. A rua também. A particularidade acústica da região histórica nos fez acreditar que acontecia uma balada no teatro, o que seria a festa mais louca desde quando os monarcas celebravam sua falta do que fazer com prodigiosas orgias nos palácios reais.

De qualquer forma, insanidade não faltou. Minha imaginação esteve em Ibiza, ou naquelas outras praias mediterrâneas ao sul da França e da Espanha, onde as pessoas dançam. Era uma calle pequena, cheia de gente, com uma música frenética ricocheteando nos prédios antigos, com as pessoas atirando a mais variada quantidade de líquidos distintos e indistinguíveis nas outras. É possível que tenha sido incluído nos ares até uma boa porção de dejetos humanos.

Saindo dali, algumas horas mais tarde, controversamente precisamos da ajuda da Virgem Maria. Certamente naquela festa não havia nada de Virgem, nem mesmo a ascendência astrológica, e a mãe do filho de Deus devia estar assustada e bem longe de lá. Mas quando clamamos por ela, a santa não nos abandonou à nossa destemperança alucinógena. Oras, o que nos é oferecido, é aceito. Mas acho que quando ela nos indicou o caminho, até mesmo o Diabo ficou feliz. “Ufa! Desses aí eu gosto”.

***

Todo mundo quer foder. Essa é outra língua universal. Todas as pessoas querem acabar a noite acabadas. Mas não há muito que ficar falando da foda alheia. Exceto, talvez, que torcemos para que algumas pessoas tenham um tempo a mais do que Deus tem para despender limpando o cu. Sei lá, como nem todo mundo criou o universo, é natural que haja alguns cus bem limpinhos por aí.

Foda é quando a foda fica alheia a você. As oportunidades são especialistas em nos perder. A verdade é que todo mundo quer jogar café em todo mundo, mas todo mundo quer transar com todo mundo também. É a lógica do louva-a-deus, aquele animalzinho verde e frágil: eu te como enquanto você me come a cabeça. E de foda em foda o mundo gira.

Tanto gira que lá anoitece mais tarde. Isso quase dá mais tempo de sol, se você parar para pensar que somos criaturas noturnas (vespertinas, talvez) que não acordam tão cedo, e, quando acordam, é porque nem foram dormir. Vagamos as estradas sonolentas, com caras de madrugada.

Há tanto crepúsculo quanto há aurora em um mesmo dia; exceto quando o sol é apenas um amontoado de nuvens. E em um deserto asfáltico, entremeado por vacas e pasto e merda de vaca, que, por efeito, é quase tudo o que os interiores daquele país possuem, vemos a luz fugidia descer a encosta da colina por trás de alguns imensos moinhos de vento, não mais impulsionando simples moedores de milho, mas sim bastiões da moderna usina eólica de energia.

As noites não acabavam nunca. Pareciam Sodoma e Gomorra, porém sem o fogo e o enxofre. Bobagem, só parecia que estávamos nos divertindo imensamente mesmo. As noites traziam tudo o que são acostumadas a trazer: prazer e confusão mental. Bobagem também: não se define o que se encontra nas noites de outro país.

Não acreditem em nada do que eu digo: toda história que não está acontecendo exatamente agora, e que não está sendo vivida, não é real. Falamos isso para os gatos daquele cemitério, que insistiam estar vivos, mas agiam como guardiões dos mortos. “Hey, faça mais um carinho em meu pelo sedoso ou a tua alma vagará eternamente pelo limbo uruguaio!”.

***

Gostaria de ficar naquele limbo para sempre, em meio àqueles malucos da Dieciocho de Julio. Se aquela rua, entre a colossal estátua do Artigas em seu cavalo simbiótico, compostos pela mesma massa de bronze, e a feira livre da Tristán Narvaja, não for o próprio limbo, então, por eliminação, só poderíamos estar nos portões do inferno, onde Dante foi aconselhado a deixar detrás de si a esperança. Aposto como o próprio Diabo, e certamente também Deus, devem dar umas voltas por ali de vez em quando, no fim da noite, em busca da melhor maconha ou de algum bom rabo.

Montevideo também não nos queria ausentes. Toda vez que deixávamos aquela cidade o céu desabava em aguaceiro. Ou então algum outro desastre não-natural nos acometia. Por isso choveu miseravelmente por dois dias em Ponta do Diabo. Depois, de volta a terras autóctones, o clima se resolveu, eram apenas pancadas isoladas de maus humores passageiros.

De toda feita, a viagem e as viagens dentro da viagem não custaram muito. O grande custo está em se manter vivo, em não arriscar acabar com a própria existência. Por exemplo, quem nunca comeu intestino de boi não sabe se a recepção pelo intestino humano será proveitosa ou não. E se deixei lá meus dejetos, trouxe de lá um pouco de tinta. O eterno ciclo do nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, poderia ser atualizado para algo como de um lugar nada se tira sem deixar algo em troca. É como dizem: “nenhuma foda sai barata”.

Por fim, como tudo que começa de fato acaba, o Deus castellano, o Deus do portuñol, latino, de sangre caliente, nos deu adeus. O Diabo nos acompanhou e nos soltou dizendo “voltem sempre”. O Uruguai desditoso nos quis e nos quer. E deixou-nos com a certeza de que lá, muito mais do que aqui, la gente está muy loca.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A Perspectiva da Existência da Vida como uma Evolução Natural do Universo

Respostas para suposições existencialistas são, desde sempre, a busca suprema, o Santo Graal, o Shangri-La de grande parte daqueles que já caminharam sobre essa Terra, que andaram por esse planeta comparativamente minúsculo em um gigantesco universo. Suponhamos que o de onde viemos e o para onde vamos tenham sua resposta na simples complexidade e na complexa simplicidade do próprio universo! Suponhamos...

O universo teria surgido de uma explosão. É no que, hoje, se acredita; é o que, hoje, se aceita. A partir da explosão, nos momentos seguintes, nos bilhões de anos que se seguiram, tudo surgiu. A princípio apenas as moléculas de hidrogênio se reagrupando e gerando novas ligações químicas. Logo, com a explosão das estrelas primordiais, elementos mais pesados e complexos, gerando planetas e tudo o mais. Dizer que somos poeira estelar não é poesia, não é romantismo exagerado. É o que somos, talvez seja o de onde viemos.

Houve uma ordem lógica nos acontecimentos: o surgimento da vida (como a conhecemos) não seria possível sem a explosão das primeiras estrelas, sem as primeiras supernovas. As estrelas surgiram, elas explodiram; novas estrelas surgiram, e essas também explodiram. Na terceira geração, surgiu o Sol. Girando em torno dele alguns planetas tímidos. Em um desses planetas, eventualmente a vida.

Essa nasce, até onde se sabe, de uma maneira aparentemente aleatória. Uma proteína entra em ligação química com uma molécula de RNA, o ácido ribonucleico. A molécula que se origina, ainda extremamente rara, acaba encontrando moléculas semelhantes a ela, originadas da junção de outras proteínas com outros RNA's. Elas se juntam e formam aglomerados, que começam a se fechar em uma espécie de célula primitiva. A célula se rompe e as duas metades conseguem se replicar e formar duas novas células a partir da informação armazenada em seus RNA's. Pronto, está surgida a primeira célula auto-replicante, e, por consequência lógica, a primeira forma de vida. Daí por diante é só evolução.

Não há porque não acreditar na possibilidade desse ser um padrão de comportamento do universo repetido à exaustão em outros sistemas estelares. Ignoremos o fato de ser a vida como conhecemos a única vida que conhecemos, talvez sejam assim todas as vidas no cosmo. Assim, toda vida surgiria da sequência estrela > planetas > vida. Tudo o que é preciso é um planeta a uma determinada distância de sua estrela-mãe, não longe e nem perto o suficiente para que a sua água não seja líquida.

Não há, então, porque não acreditar que seja essa a única forma pela qual a vida pode surgir, que seja essa a sequência óbvia da origem da existência, que seja essa a evolução natural do universo. O universo surge e gera estrelas, elas geram planetas e eles geram a vida. O universo gera a vida. Ele quer a vida. Ele sabe que a vida surgirá através dessa lógica sequência de acontecimentos. O universo é auto consciente. E as coisas vivas é que são a consciência do universo. Nós somos a forma dele olhar para si mesmo e se perguntar de onde veio e para onde vai.

Nessa evolução natural do universo de modo a gerar a vida, qual seria o próximo passo da vida como conhecemos? As estrelas. Em um círculo de criação e destruição, de ordem e caos. Nós nos tornaremos as estrelas, e as estrelas são criaturas vivas. Para acreditar nessa perspectiva talvez seja necessário aceitar nosso corpo como um simples invólucro que resguarda uma coisa interior imortal, uma essência que evoluiria em suas experimentações da vida como conhecemos, até o ponto de se tornar uma criatura senciente tão evoluída e superior que é capaz até mesmo de emanar luz.

E talvez essa seja a simples e complexa evolução natural do universo, essa criatura senciente da qual nós acabaremos nos tornando parte cada vez maior. Essa criatura que nos quer e nos deseja, e nos criou para olharmos para si próprio e conjecturarmos de onde viemos e para onde vamos. Oras, viemos dele e para ele iremos. Somos ele e ele seremos.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Carta de Adeus - Tomo II

...porque foi um tipo de sonho que perdeu-se para sempre, mas de uma maneira diferente do tradicional perder-se para sempre. Não foi apagado pelo fraquejamento da memória recém-desperta e ainda não acostumada ao mundo real, afetada pela transição entre o onírico do sono e o onírico à nossa volta. Mas sim um sonho irrecuperável, daqueles que é possível lembrar nos mínimos detalhes, mas que não mais voltarão.

Nossa percepção é capaz de obedecer somente a padrões demasiadamente limitados. Não compreendemos o mundo em toda a sua imensidão, não compreendemos sequer a nós mesmos e nossas peculiaridades. Sabemos que o que regula as decisões atribuídas a corações loucos e insensatos é, na verdade, uma pequena porção de enzimas e hormônios. Mas até que ponto podemos determinar as parcelas de culpas delas, e a parcela de culpa dos corações loucos e insensatos, isso ainda é uma incógnita.

Prefere-se o romantismo da dúvida. Se não entendemos plenamente, podemos incutir um bom bocado de magia na coisa. É assim que funciona com todos os nossos não-saberes. Não sabemos do futuro, embora possamos conjecturar; e não sabemos nem mesmo do passado. Tenho a impressão de que uma parte de nossas memórias nunca chegou realmente a acontecer. O que chamamos de memória é um ajuntado do que vivemos e do que acreditamos ter vivido.

Não me lembro mais o que aconteceu no mundo real e o que se passou apenas no mundo dos sonhos. Não me lembro mais quanto de você é uma fantasia onírica e quanto existiu comigo de verdade. Tenho vivido realidades paralelas e não sei mais se alguma delas é real. Tudo o que sei é que a presença já é ausência, e, quanto a isso, tudo bem.

De qualquer forma, sem mais empecilhos pseudo-literários, te digo adeus, como se desfaz de um sonho pela manhã, quando o relógio despertador apita incansavelmente e o dia insiste em começar. Te digo adeus como te disse olá, com a mesma naturalidade de uma estrela em explosão de supernova. Te digo adeus com uma carta como tantas que já escrevi. Enfim, te digo adeus pela última vez, e volto a dormir, no aguardo do próximo sonho.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Carta de Adeus - Tomo I

O onirismo excedente de minha alma com frequência se manifesta durante a vida desperta. Nunca precisei dormir para sonhar. Não acho que o sono seja o caminho do sonho, acredito que eles apenas se manifestam correlatamente para a maioria das pessoas em virtude da conveniência da ausência de atividades mais pragmáticas durante a noite. Mas eu sonho o tempo todo.

Lhe escrevi cartas. Diversas cartas sem endereçamento postal. Não confundamos: destinatária havia, remetente havia. Só não havia porquê entregar. Ou como. Há que se fazer justiça ao bem da verdade: as cartas foram sim entregues. De uma maneira ou de outra, mesmo que não fisicamente, mas tudo que houve para dizer e escrever em linhas azuis, dito foi, escrito foi, entregue até mesmo pelo abstrato canal de um simples olhar.

Nunca cheguei a me desacostumar com o brilho fosco da tua presença. Parece que ainda vou encontrar você na próxima esquina, entre os transeuntes anônimos e sem face, entre essas pessoas que carregam suas vidas em uma sacola barata de mercado. Você se destacando imensamente, com um brilho fosco que só agora consigo definir, uma luminescência errante e com um quê de errada. Extremamente marcante, e, ainda assim fosco, turvo, opaco. Um brilho sem brilho.

Há um momento em nossas vidas, nas vidas de todos nós, em que, sem delimitação, divisória ou fronteira, passamos a nos acostumar e aceitar o fato de sermos efêmeros. Somos criaturas tão transitórias e extinguíveis quanto os nossos sonhos. Os do sono ou os acordados, todos os que nunca mesmo chegam a acontecer na realidade. Somos finitos, e tudo bem. O triste mesmo é que sejamos tão breves.

E como pode, dada tanta brevidade, a singularidade de um único momento, de algumas poucas horas, ficar marcada com tanta intensidade ao longo dos anos? Acredito que somente tendo sido um sonho, um dos meus sonhos acordados que se fazem sempre presentes. Um sonho contínuo talvez, diferente daqueles que, quando se acorda repentinamente, ao tentar voltar a dormir para continuá-lo, perde-se para sempre...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Manifesto pela Perenidade da Autoria

Desde o primeiro momento em que o ser humano foi capaz de contornar o tempo e registrar nas paredes das cavernas a sua perene existência, começou a ser produzida literatura. Ao longo dos milênios, já foi produzida tanta quanto o volume de seres viventes a experienciar a existência.

O princípio dessa capacidade de vencer a exatidão da morte se deu nas rochas, tanto das primordiais moradas cavernosas, quanto nas pedras que permaneceram soltas na natureza. A tinta provinha de pigmentos naturais, de origem animal, vegetal ou mineral, localizados por mãos pioneiras. A autoria da obra, essa se perdeu.

Quem exatamente eram aqueles homens e mulheres?, o que eles faziam?, por que faziam?, e o que se passava por suas cabeças?, tudo isso nenhum presente ou futuro poderá dizer. A autoria se perdeu e a obra ficou. Venceu os milênios, subjugou a morte. Não se sabe quem fez, mas sabe-se que foi feito. É o que fica; é o que importa.

Assim sendo, para o interesse da literatura, da obra em si, como essência, como criatura que inexoravelmente vive além do criador, o criador não importa. O autor não importa e nunca importou. O autor não deve nunca ser eterno, e, por conseguinte, o autor precisa ser perene. O autor não deve nunca viver tanto quanto a obra, ele deve ser esquecido. Deixemos a obra perdurar sozinha! A autoria deve ser perene!