quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Sobre atear fogo ao céu

Ela tinha nas faces fogosas uma sinceridade quase canina. Nos olhos uma chama constante, e todo mundo gosta de olhos em chamas, são sempre mais vívidos e intensos que os regulares.

Costumava dizer que não gostava de quem não faz barulho. "São as pessoas mais monótonas", dizia, e arrematava com uns xingamentos menos propícios, e aquela chama aquiescente nos olhos dela ficava ainda mais intensa. Por vezes arrumava uma confusão só pelo prazer de incendiar. As pessoas mais certas são as que veem o circo pegando fogo de dentro dele.

Outra certeza que tinha era o fato de não querer protelar muito, velas finas queimam mais rápido, e deixam menos sujeira. Sabia que ninguém faz seu destino sentado no sofá da sala, aquele que um dia falaram ser excitante, sabia também que o princípio da incerteza dizia que sua única certeza era a dúvida. Por isso, já não tinha certeza de mais nada, odiava ainda mais as pessoas certas de si.

Um dia, ela procurava companhia, anti-matéria para sua matéria. E a junção de dois caos só pode ser algo ainda mais destrutivo, pois que o que há de bom é progressão aritmética, e terror é progressão geométrica. Amplificado o caos, a chama ardia ainda mais intensa.

Combustão, fagulhas, chamas, queimaduras, incêndio, labaredas. Eram tudo isso e um pouco mais, em maior ou menor grau. Até se extinguir.

Pois foi tanto assim que ela deixou de procrastinar o destino supremo, bênção dos homens, aquilo para quê todas as pessoas nascem. Companhia ficou, visto que a nem todos os lugares se pode ir acompanhado, visto que alguns caos acabam por minguar conforme a sombra dos tempos aumenta, e a eternidade se põe no horizonte.

Porém, há coisas que devem ser eternas, mesmo que não sejam. Pois que tudo que existe por algum tempo, deve ser eterno naquele tempo em que existiu. Assim, passado mais algum período, agitaram a combustão uma vez mais onde quer que fosse. E reencontraram-se, e naquele instante atearam fogo até mesmo aos céus.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Para Voar

Não pretendo quebrar a barreira do som, esse sonho é para poucos. Não que esse não deva ser sonhado, só que no caso não é necessário. Pular de paraquedas ainda é mera analogia à vida que se leva, sonhar alto, sonhar distante. Porque quem sabe surjam asas e se possa voar.

Voar é sonhar ainda mais alto, querer bater asas na verdade não é errado, somos criaturas da terra adaptadas aos céus e aos mares. Mas não se voa no mar e não se nada no céu, a não ser nas metáforas. No chão só é mais fácil de respirar, para todas as outras aventuras há que se esforçar muito.

Não existe problema nenhum em ser demais, errado mesmo é ser de menos, ser incompleto, ser insuficiente. Ninguém quer algo que não satisfaça, e o que sobrar... o que sobrar deve ser lucro.

Por isso há que se sonhar alto, objetivar o que está distante, o que está perto é tão fácil quanto desnecessário, é simples degrau para escadarias mais altas. Pensar pequeno é limítrofe, porque se contentar com os céus quando se tem o espaço? Porque se contentar com lagos quando se tem oceanos inteiros?

Basta voar, basta que as asas funcionem, basta mesmo levantar e fazer algo acontecer, pensar grande não é errado. Errado mesmo é deixar o grande continuar pequeno, procrastinar a glória. O ápice nada mais é que um objetivo atualizável.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Em Alta Velocidade

Ontem, saí alta noite do bar onde estava com alguns amigos, e peguei o carro do qual era responsável. Estava bêbado, não absurdamente, havíamos bebido bastante, porém em bastante pessoas. Num rápido cálculo mental, contabilizei umas quatro ou cinco latas por pessoa na média. Mas como não sou dos mais fortes para o álcool, estava suficientemente bêbado.

Me dirigi e dirigi para um lugar relativamente isolado, era madrugada e eu sabia que lá as chances de prejudicar alguém eram reduzidas a quase zero, eu estava lá por minha conta e não queria atingir ninguém. É naquela rodovia que corta a cidade, todos conhecem e passam por lá com frequência, tem nome de metal pesado.

Numa longa reta, comecei a acelerar, trocando as marchas rapidamente. As paisagens passavam cada vez mais rápido, árvores e casas e cercas e placas e tudo o mais. No retrovisor eu via o reflexo das luzes artificiais de iluminação pouco coesa. O velocímetro subindo, todos os ponteiros do painel colorido agitando-se gradativamente.

Ninguém é obrigado a viver, ninguém é obrigado a morrer. Velocidade é apenas uma forma de cortar o tempo/espaço, e devem existir outras. Conforme o carro ia mais rápido, memórias surgiam em minha mente, todas as situações que me levaram até aquele momento, e a certeza de que a escolha de estar ali era unicamente minha. Escolha consciente, diga-se de passagem, pois ninguém é obrigado a viver e ninguém é obrigado a morrer.

Quando o ponteiro do velocímetro atingiu a marca de 180 km/h, eu sabia que não me restava muito tempo. A reta era longa, mas eu já havia cortado boa parte dela, e cada vez mais rápido o espaço a se percorrer seria vencido em menos tempo, eu tinha certeza absoluta do que não fazer naquela curva que se aproximava.

Nos 240 km/h então aconteceu a coisa mais intensa que eu vivenciei em toda essa vida desregrada. Eu saí para fora de meu próprio corpo, como se ele não tivesse sido capaz de acompanhar a velocidade, e o carro estivesse agora viajando à frente dele. Era algo como projeção astral, se é que esse nome se faz adequado. Eu estava lá em cima, e via o rápido deslocamento do veículo e a aproximação da curva definitiva.

Então comecei a diminuir a velocidade, sem qualquer tipo de desespero, eu não estava desistindo da escolha anterior, só estava praticando uma nova escolha. O carro reduziu sua velocidade gradativamente, e a curva parecia na verdade estar ficando mais longe, pois que aquela curva era mera metáfora. Eu não era obrigado a morrer, apesar de não ser obrigado a viver.

Parei do carro, desci do veículo e olhei pro céu, lá longe aquelas estrelas não têm a capacidade de escolher, ninguém nunca falou pra elas em livre arbítrio. Por isso, a morte delas é mais próxima que a nossa. Porém, eu tinha a possibilidade de colocar tudo na balança, e uma vida é feita de medires. Vida, morte, são coisas relativas demais, metafísicas demais, coisas que carro algum pode explicar, e que velocidade nenhuma pode escolher.