segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

En El Uruguay, La Gente Está Muy Loca

Choveu miseravelmente durante os dois dias em que estive em Ponta do Diabo. A Ponta do Diabo é o que os uruguaios chamam de Punta del Diablo. Gosto dessa tradução porque parece que estamos falando da pica cabeçuda e veiúda do próprio Diabo. Outro dia, fiquei sabendo que todo pinto é diferente. Cada qual tem as suas especificidades muito características. Como uma impressão digital, não existem duas picas iguais. E também não há duas bucetas iguais.

Parei para imaginar se Deus limpava a bunda direitinho. Acho que quando você é Deus não deve ter muito tempo para ficar limpando o rabo minunciosamente, esfregando o papel higiênico em cada ranhura do cu à procura de algum resquício de bosta. Provavelmente ele apenas dê uma limpada geral e deixe para resolver o resto da situação mais tarde, no banho. Mas isso é apenas uma conjectura. Afinal, ninguém deseja sofrer as consequências a longo prazo por não ter limpado o rabo durante a vida.

Ficou chovendo durante os dois dias em que estivemos lá. Era um tempo fechado, sem a menor intenção de melhorar. Na verdade, não ficamos dois dias, foi uma noite cercada por um final de tarde e um início de manhã.

Mesmo com esse problema climático, o lugar estava ótimo, a bebida era barata e consegui, na nossa última noite no estrangeiro, deixar meu suco gástrico naquele país. Passei a madrugada vomitando a tequila que bebemos. Ali, estabeleci a meta de não vomitar mais do que uma vez por mês ao longo dos próximos anos. Chega uma hora em que um sujeito cansa de ver os seus restos alimentares interiores se estrebuchando e saindo por onde deveriam entrar.

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Alguns dias antes, acabávamos de cruzar a fronteira. Acho um absurdo que as pessoas construam aduanas e proíbam as outras pessoas de atravessá-las simplesmente por terem estado a vida toda delas do outro lado. Como se as pessoas dali não cagassem também.

Carimbam papéis, atestam documentos, olham para a tua cara suja e cansada a verificar se aquela foto ali é você mesmo. Se eu fosse um ladrão de identidades, um falsificador ideológico, a última pessoa com quem eu me pareceria seria eu mesmo.

Em último caso, até aceitam uma propina. Pedem, muitas vezes. É possível comprar qualquer sujeito, todos têm seu preço, não importa a moeda corrente: dólar, peso ou real. “Só não aceitamos o euro, o que eu faria com essa porcaria?”.

Compraria uma pessoa, eis o que eu faria. Pronto!, agora você é meu, atravesse a fronteira e grite que são todos uns pendejos. Cumpram minhas ordens e todos serão poupados. Talvez Deus tenha até bicho carpinteiro, só assim para que ele tenha essas ideias.

No final das contas eram todos uns pendejos e umas pendejas mesmo. Atravessamos diversas fronteiras, a maioria delas municipais ou estaduais. Mas quando foi preciso confrontar nação contra nação, duas vezes correu tudo bem, apesar de que na primeira nem sabíamos o que viria a ocorrer em qualquer das possibilidades; ninguém nos parou. Na terceira vez deu tudo errado. Pouco importa: en el Uruguay, la gente continuaba muy loca.

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É preciso prestar mais atenção quando não se está em território conhecido. Todos acabam sendo vítimas; ao menos acreditam que são. Todos são bandidos também. Há um pequeno assassino preso em cada mente, matando o nosso tempo. Quando se está no estrangeiro, não há também que se perder tempo.

Mas há que se tirar um tempo para dormir. Os carros do outro lado da rodovia nunca sabem quem sofre mais, todos são a maior vítima do mundo e os outros motoristas, esses sim, são uns pendejos. Mas se ninguém errasse, ninguém morreria. Oras, todo mundo precisa de um saco de pancadas, só evitem as colisões frontais. Evitamos todas elas, e cá estamos: vivos.

Nas rodovias, revoltosos. Nas ruas, os malucos. “Esto habla dos idiomas: español y mierda!”. Pelos vistos, por quase comprovação empírica de estudo social de massas, essa é uma situação recorrente.

Distribuímos cigarros e visitamos um cassino. Não daqueles suntuosos templos de adoração jogatinesca, onde o Diabo certamente ficaria de pau duro. Apenas um casarão com tapete empoeirado e máquinas programadas para tirar as moedas de velhos e velhas claramente desacorçoados com a vida que levaram. Suas caras sujas e cansadas dariam a entender que foram expulsos de todas as fronteiras que já tentaram atravessar nessa vida.

Ao contrário do que todos pensam, é preciso muita coragem para se tornar um velho que desistiu de tudo. Há poesia também na derrota.

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As pessoas falavam diversos idiomas, e, quase sem exceção, todos se entendiam. Há algumas línguas que são universais. O querer se comunicar é uma delas. Conheci muita gente que estudou comunicação durante anos e ainda não aprendeu a falar. Balbuciam monossílabos manhosamente, na esperança de conseguir aquilo pelo que ainda não têm capacidade de lutar.

Na Província Cisplatina, conheci muita gente que nunca esteve em uma aula sequer relacionada à comunicação, mas é capaz de humilhar comunicacionalmente qualquer um. O meio e a mensagem que ardam nas chamas do inferno, a comunicação se dá entre seres humanos, e disso não há teoria que dê conta. Na verdade, essa parte do texto devo certamente suprimir na versão final. Não se fala de comunicação a comunicadores, são todos uns traumatizados.

Entre filhos da puta, pendejos, cabrónes, assholes, schwanzlutschers e ainda outros mais, acabamos globalizando um pouco mais o nosso léxico de pessoas.

É como se as pessoas pudessem ser colocadas também em um dicionário. Claro que não seria simples defini-las, mas elas viriam com o nome de batismo civil, classe gramatical a que pertence (diferente da definição de gênero, vejam bem, verbo nenhum é feminino ou masculino), e uma ou mais breves definições, resumidamente. Haveria também um exemplo de aplicação na frase. É sempre possível aprender uma pessoa nova.

Aprendemos um dicionário inteiro de pessoas nas estradas. Praticamente um desses idiomas modernos, as pontas dos galhos nas árvores pictóricas que começam lá na Torre de Babel, e são formados por um pouco de cada outro idioma. A globalização está aí para isso.

Conta uma antiga lenda que um dia Deus e o Diabo se encontraram para jogar uma partida de Batalha Naval. O Diabo resolveu tirar um sarro de Deus e inventou um novo idioma para confundir seu adversário durante o jogo. Cada vez que o Coisa-Ruim ia escolher uma coordenada para lançar sua bomba, falava uma coisa ainda mais sem sentido do que a anterior. O Todo-Poderoso começou a ficar muito puto e jogou a brincadeira para o alto, mandando tudo à merda. Talvez o Cão até estivesse tentando provar alguma coisa sobre a Ira e aquela baboseira toda, mas o fato é que ficaram sem se falar por mais alguns séculos.

Na verdade, acabo de inventar essa lenda. Quem não gostou, que pare a leitura agora e vá para o Diabo que o carregue. Ou para Deus.

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Quando arranjamos confusão lá, ninguém entendeu. Provavelmente porque brigávamos em português. A garçonete queria derramar café em todo mundo; é o sonho de toda garçonete antes deslumbrada e hoje frustrada. A vida não vai para frente pra ninguém. E nem adiantava pedir a ajuda divina, Deus estava cagando. Espero que ele tenha limpado a bunda dessa vez.

Saímos de lá sem pagar, não que isso nos orgulhe, mas precisava ser feito. Um cognato que em português é substantivo, em espanhol vira verbo fica muito difícil de traduzir, e de calcular também. Cambiar é uma coisa difícil. Não que isso nos orgulhe, mas há festas e festas.

Em outra, subimos em cima das mesas. A calçada estava tomada. A rua também. A particularidade acústica da região histórica nos fez acreditar que acontecia uma balada no teatro, o que seria a festa mais louca desde quando os monarcas celebravam sua falta do que fazer com prodigiosas orgias nos palácios reais.

De qualquer forma, insanidade não faltou. Minha imaginação esteve em Ibiza, ou naquelas outras praias mediterrâneas ao sul da França e da Espanha, onde as pessoas dançam. Era uma calle pequena, cheia de gente, com uma música frenética ricocheteando nos prédios antigos, com as pessoas atirando a mais variada quantidade de líquidos distintos e indistinguíveis nas outras. É possível que tenha sido incluído nos ares até uma boa porção de dejetos humanos.

Saindo dali, algumas horas mais tarde, controversamente precisamos da ajuda da Virgem Maria. Certamente naquela festa não havia nada de Virgem, nem mesmo a ascendência astrológica, e a mãe do filho de Deus devia estar assustada e bem longe de lá. Mas quando clamamos por ela, a santa não nos abandonou à nossa destemperança alucinógena. Oras, o que nos é oferecido, é aceito. Mas acho que quando ela nos indicou o caminho, até mesmo o Diabo ficou feliz. “Ufa! Desses aí eu gosto”.

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Todo mundo quer foder. Essa é outra língua universal. Todas as pessoas querem acabar a noite acabadas. Mas não há muito que ficar falando da foda alheia. Exceto, talvez, que torcemos para que algumas pessoas tenham um tempo a mais do que Deus tem para despender limpando o cu. Sei lá, como nem todo mundo criou o universo, é natural que haja alguns cus bem limpinhos por aí.

Foda é quando a foda fica alheia a você. As oportunidades são especialistas em nos perder. A verdade é que todo mundo quer jogar café em todo mundo, mas todo mundo quer transar com todo mundo também. É a lógica do louva-a-deus, aquele animalzinho verde e frágil: eu te como enquanto você me come a cabeça. E de foda em foda o mundo gira.

Tanto gira que lá anoitece mais tarde. Isso quase dá mais tempo de sol, se você parar para pensar que somos criaturas noturnas (vespertinas, talvez) que não acordam tão cedo, e, quando acordam, é porque nem foram dormir. Vagamos as estradas sonolentas, com caras de madrugada.

Há tanto crepúsculo quanto há aurora em um mesmo dia; exceto quando o sol é apenas um amontoado de nuvens. E em um deserto asfáltico, entremeado por vacas e pasto e merda de vaca, que, por efeito, é quase tudo o que os interiores daquele país possuem, vemos a luz fugidia descer a encosta da colina por trás de alguns imensos moinhos de vento, não mais impulsionando simples moedores de milho, mas sim bastiões da moderna usina eólica de energia.

As noites não acabavam nunca. Pareciam Sodoma e Gomorra, porém sem o fogo e o enxofre. Bobagem, só parecia que estávamos nos divertindo imensamente mesmo. As noites traziam tudo o que são acostumadas a trazer: prazer e confusão mental. Bobagem também: não se define o que se encontra nas noites de outro país.

Não acreditem em nada do que eu digo: toda história que não está acontecendo exatamente agora, e que não está sendo vivida, não é real. Falamos isso para os gatos daquele cemitério, que insistiam estar vivos, mas agiam como guardiões dos mortos. “Hey, faça mais um carinho em meu pelo sedoso ou a tua alma vagará eternamente pelo limbo uruguaio!”.

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Gostaria de ficar naquele limbo para sempre, em meio àqueles malucos da Dieciocho de Julio. Se aquela rua, entre a colossal estátua do Artigas em seu cavalo simbiótico, compostos pela mesma massa de bronze, e a feira livre da Tristán Narvaja, não for o próprio limbo, então, por eliminação, só poderíamos estar nos portões do inferno, onde Dante foi aconselhado a deixar detrás de si a esperança. Aposto como o próprio Diabo, e certamente também Deus, devem dar umas voltas por ali de vez em quando, no fim da noite, em busca da melhor maconha ou de algum bom rabo.

Montevideo também não nos queria ausentes. Toda vez que deixávamos aquela cidade o céu desabava em aguaceiro. Ou então algum outro desastre não-natural nos acometia. Por isso choveu miseravelmente por dois dias em Ponta do Diabo. Depois, de volta a terras autóctones, o clima se resolveu, eram apenas pancadas isoladas de maus humores passageiros.

De toda feita, a viagem e as viagens dentro da viagem não custaram muito. O grande custo está em se manter vivo, em não arriscar acabar com a própria existência. Por exemplo, quem nunca comeu intestino de boi não sabe se a recepção pelo intestino humano será proveitosa ou não. E se deixei lá meus dejetos, trouxe de lá um pouco de tinta. O eterno ciclo do nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, poderia ser atualizado para algo como de um lugar nada se tira sem deixar algo em troca. É como dizem: “nenhuma foda sai barata”.

Por fim, como tudo que começa de fato acaba, o Deus castellano, o Deus do portuñol, latino, de sangre caliente, nos deu adeus. O Diabo nos acompanhou e nos soltou dizendo “voltem sempre”. O Uruguai desditoso nos quis e nos quer. E deixou-nos com a certeza de que lá, muito mais do que aqui, la gente está muy loca.