Quando eu morri, a primeira coisa que fiz no inferno foi procurar os meus escritores favoritos.
O primeiro problema a me preocupar assim que tomei a decisão de fazer isso foi se cada nação teria o seu próprio inferno. Nesse caso, eu encontraria no máximo o Veríssimo, mas então preferiria que ele houvesse mesmo ressuscitado e ficasse apodrecendo em alguma praça.
O inferno brasileiro provavelmente seria repleto de cariocas falando sem parar, e certamente seria governado pelo Getúlio. Haveria uns portugueses sodomizando a população e toda sorte de europeus fodendo as pobres almas brasileiras de alguma forma. Faria um extremo calor sem nunca chover, mas não haveria praias ou sombra, apenas mosquitos por toda a parte, zumbindo e picando todo mundo.
A segunda coisa que me preocupou foi a dificuldade que eu teria em encontrá-los. Eu nunca acreditei nem desacreditei em reencarnação, afinal eu nunca havia morrido (que eu me lembre) para saber sobre isso. Acontece que no caso dela não existir, haveria no mundo muito mais gente morta do que viva, imaginem a superpopulação do inferno em uma perspectiva dessas. Procurar meus autores favoritos seria como procurar o Hemingway em Cuba.
Logo percebi que o inferno estava relativamente vazio. Deveria haver algum tipo de vazão às almas, seja por reencarnação, seja elevando-as ao limbo, paraíso ou qualquer lugar superior. Na verdade, sempre acreditei no conceito de inferno dos antigos gregos: todos vão para lá, independente de índole, não há paraíso com cordeirinhos e leõezinhos andando juntos, nem sujeitos vestidos de branco tocando harpa. Para o diabo com essas concepções. Oras, precisei admitir a possibilidade de eu estar errado.
O problema é que eu não tinha certeza sobre nada. Não teve um filho da puta para me receber e dizer para onde eu deveria rumar, me mostrar as instalações, ou ao menos dizer “olha cara, você vai ficar naquele lago de fogo ali do tormento eterno”. Tudo era muito subjetivo, uns caras queimando aqui, outros carregando pedras enquanto levavam chibatadas ali, alguns outros sofrimentos variados, uma galera sendo enrabada, e, basicamente, era isso.
Até, por um breve momento, achei que eu devesse mesmo era ficar ali parado esperando meu sofrimento supremo. Mas que se fodessem todos os demônios, saí caminhando.
Comecei a perguntar se o local era dividido por nações, castas, raças, origem social, épocas ou qual outro tipo de organização. Ninguém parecia querer me dar muito ouvidos, apesar de todo mundo se entender. Percebi que não se falava português, inglês ou latim, não se falava idioma nenhum, nós simplesmente nos entendíamos.
Depois de alguns minutos, um sujeito decrépito, com a pele totalmente queimada e deteriorada resolveu conversar comigo. O cara parecia estar ali há milênios e andar completamente entediado, mas me disse que não havia nenhuma unidade temporal no inferno. Sofrimento eterno era eterno mesmo, e incontável.
Perguntei se ele havia visto o Bukowski recentemente. Caso eu estivesse errado quanto ao conceito de céu e inferno, aliás, caso todos os gregos estivessem errados, um cara que eu sabia estar naquele lugar era o Bukowski, não havia como ele ter ido para o paraíso. O cara não sabia de quem eu estava falando (mais tarde descobri que ele havia morrido na epidemia da peste negra), mas me informou que havia um lugar onde os literatos se reuniam para jogar poker todas as terças-feiras.
Achei meio contraditório os caras se reunirem às terças-feiras, visto que ninguém dividia o tempo em unidades temporais por ali. Qualquer dia poderia ser terça-feira ou qualquer outra coisa.
Continuei andando e perguntei para alguém que dia era hoje. Uma vez soube da história de um homem que morreu e passou sete anos no cemitério acreditando ainda estar vivo, mas sem entender porque não conseguia sair de lá. Minhas memórias de vida ainda estavam bem intensas, mas não havia como eu ter certeza de que morrera naquele mesmo dia ou há vários séculos.
De qualquer forma, acabei encontrando o Steinbeck na mais pura coincidência: parei para mijar atrás de uma árvore e ele estava lá mijando também. Gritou que a porra da árvore era dele, pedi desculpas e tentei iniciar um diálogo. Saí-me tão bem que acabamos indo ao boteco tomar uma cerveja.
No boteco, o Steinbeck começou falando alto e expondo seu ponto de vista sobre algumas injustiças que ele acreditava estarem acontecendo ali no inferno. Não entendi bem o problema, mas reparei que ele foi ficando mais soturno conforme alguns sujeitos entravam na conversa, concordando e discordando pelo bar.
Subitamente, ele se levantou e saiu. Tentei em vão segui-lo já sabendo que ele iria ao torneio de poker, mas acabei o perdendo de vista no meio da turba. Lá fora, a confusão era maior ainda. Alguém havia montado um palanque em uma praça que ficava bem em frente ao bar e discursava fazendo sua campanha política, concorria ao cargo de demônio distrital.
Reparei com grande alegria no Tolkien e no Wells conversando ali no meio da plateia, junto com a galera. Fui me aproximando devagar para não parecer um fã desesperado, mas os dois me viram e me chamaram pelo nome para que eu me juntasse a eles. Eu estava mesmo com sorte.
Continua...