sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Todo Coração é em Natureza Selvagem

Every fire is desire
Every light is delight
Every heart is wild in nature

Todo coração é em natureza selvagem. Nasce-se livre, os grilhões vêm depois. Todo fogo é desejo. Toda luz é prazer. Essencialmente selvagem é a natureza do fogo, da luz, do desejo e do prazer.

Todas as dissonâncias são recônditos errôneos da natureza. Reafirmações passageiras. É o barulho das almas em vibração. O som é o balouçar ritmado do ar produzindo ondas simétricas, um mar perfeito. Todo som é selvagem por si só. Todo som é frenético.

É o fogo de duas pequenas rochas em contato. Fricção, agitação, faíscas. Todo fogo é fricção. Combustão e comburente. Desejo ardente. Duas almas em vibração. Fricção em contato. Todo fogo é também em natureza selvagem. Subversivo e perversor. Controlador incontrolável.

Todo rio é sim mar. Águas são profusão. Aguaceiro, catarata, queda d’água e corredeira. Açude, alagamento, igarapé. Toda água é em natureza selvagem. É luz e é prazer. No brilho prismático de cristalina superfície reflexiva. As chuvas são deturpações, inconstâncias. Água também é quente, é agitação.

O coração é por si só natureza. Do desejo e do prazer às almas em profusão. Um mundo em corredeira, na mais frenética fricção. Todo fogo da Terra é desejo. Toda luz que aqui jaz é prazer. Todo coração que aqui nasce, cresce, desenvolve-se e morre, é selvagem em natureza e pela natureza assim feito selvagem será.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Retrospectiva 2015


Sem mais delongas, vamos direto ao que interessa, a lista dos escolhidos na Retrospectiva 2015 de Melhores Tweets:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Sobre Mudar

A evolução é parte natural do processo existencial de toda criatura. É importante que estejamos sempre aprendendo. Adquirindo novas técnicas e habilidades para lidar com o mundo, que, assim como as coisas vivas que nele habitam, está em constante processo mutacional.

Sempre me perguntei se as pessoas mudavam ou não mudavam. Essa é uma questão que há anos permeia meus questionamentos sobre o universo. Afinal, partia dessa mesma premissa: se o mundo muda, porque havemos de ser seres estáticos, ininfluenciáveis, constantes e parcimoniosos. Não somos assim, somos maleáveis, inconstantes, vulcânicos.

Na verdade, fazemos as duas coisas: mudamos e não mudamos. Nos tornamos coisas novas e somos a mesma coisa. Atacamos a existência em duas frentes. E não poderia ser diferente, criaturas tridimensionais devem naturalmente ver o mundo em diferentes âmbitos espaciais, bilateralmente, frente e verso, claro e escuro.

Isso acontece porque trocamos de pele, como alguns répteis, mas mantemos a mesma consistência física. Mudamos o tempo todo nas pequenas coisas, nos ideais, nas opiniões, nos questionamentos que fazemos, nos aprendizados, quando deveríamos nos tornar pessoas melhores. Mudamos no dia a dia, no atravessar de rua mais cauteloso após um atropelamento, no preconceito abandonado após um conhecimento do assunto, na postura emocional mais madura após uma situação complicada vivida.

Mas em essência, no fundo no fundo, em quem somos e nunca deixamos de ser, nisso somos os mesmos. É isso que nos faz. Somos como uma pedra, um bonito mármore, que depois de moldado se torna uma elegante escultura. Ele continua sendo pedra, em sua essência ele ainda é pedra, mas ficou ainda mais bela e agora é escultura. Mudou e não mudou. Se tornou uma coisa nova e ainda é a mesma coisa.

Mudar não é ruim, não mudar também não é. Somos mesmo essa ambiguidade existencial. Não somos definitivos, afinal, nada o é. Somos répteis e somos pedras, aprendendo com o mundo conforme ele vai se modificando. E isso tudo é essencial, é a nossa essência.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A Vida num Túnel

Tenho percebido a vida passando por mim como se eu estivesse dentro de um túnel. Um daqueles profundos, largos e escuros túneis do metrô, onde ficamos presos no vagão, estáticos pela lei da inércia, enquanto as paredes deslizam sorrateiramente, sem privilegiar nenhum detalhe de si próprias, como se fossem apenas uma infinita massa disforme.

Vez por outra uma estação de parada surge no horizonte. Não as vemos com muita antecedência, o próprio formato da vida não o permite, é um túnel longo e a divisória dos vagões não permite ver longe. Mas percebemos seus sinais, antes da estação sempre há uma grande incidência de colunas surgindo nas paredes do túnel. Manchas cinza de concreto que aparecem ritmadamente, com cada vez mais frequência conforme a velocidade da vida diminui para parar na estação.

Na estação, podemos ver centenas de cartazes com propagandas, manifestos, anúncios, campanhas. Algumas pichações, um ou outro mendigo dormindo, uma multidão de pessoas sem alma. E então a viagem começa novamente, a velocidade aumenta, o tempo continua vindo na minha direção, distorcendo as paredes do túnel.

Engraçado como o primeiro fato de nossas vidas não fica marcado em nossas memórias. O nascimento certamente é uma experiência traumática. Imagino que deixar o conforto do útero quentinho, da segurança do líquido amniótico e da alimentação conduzida ate nós não deve ser nada fácil. Sair para enfrentar um mundo vil que se desloca a uma velocidade inacompanhável, deixando à vista apenas os rasgos aparentes de avisos de 'não ultrapasse a faixa amarela'. Não surpreende que não lembremos dessa experiência.

A partir daí a vida acelera. Nosso objetivo primordial e único assim que nascemos é morrer. Na primeira respiração começamos a nos atribuir objetivos novos, e vamos levando-os adiante, sem parar muito para olhar as paredes do túnel. Estamos estáticos dentro desse vagão que nos foi dado. A vida vem vindo até nós, profunda, larga e escura.

Então percebemos que a nossa vida está passando num túnel. Que precisamos de bifurcações, que precisamos mudar o rumo do metrô, parar o maquinista, descer do vagão e subir as escadas rolantes, respirar o ar puro! Não precisamos de trens-bala chegando a seus destinos a 600 quilômetros por hora. Precisamos parar e observar a paisagem. Precisamos diminuir o ritmo e ler os avisos, olhar para as paredes prestando atenção aos detalhes geralmente imperceptíveis. Ou o trem nunca parará, até onde não houver mais trilhos.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Crônicas da Rua

1 - São todos uns idiotas. Alguns são mais idiotas do que os outros, e alguns são idiotas por razões diferentes. Mas são todos uns idiotas.

2 - Naquele tempo, andávamos em um auge de insanidade. As noites eram frenéticas e, não raro, duravam um final de semana inteiro. Víamos o sol nascer de um lugar diferente a cada dia. Sem nem saber direito para onde ir, íamos aonde desse vontade. Em uma noite específica, havíamos deitado a cidade aos nossos pés, éramos os reis da rua, todos se ajoelhavam e nos louvavam à nossa passagem. A caminho da madrugada, fomos parar em um apartamento onde todo mundo estava nu. Dormimos exultantes com nosso reinado.

3 - Não tenho paciência para quem me dá sono. À minha volta, preciso das pessoas insanas, de quem não teme a morte e muito menos a vida. Quem está disposto a aceitar tudo o que o mundo tem a oferecer. Caminho lado a lado com esses bandidos corruptores incorruptíveis, ladrões de coisas mais nobres, vencedores do tempo. Esses que tiram a vida para dançar e bailam brilhando por onde os outros caminham.

4 - Eu não me apaixonava havia dois anos. Desejava constantemente que ela ainda estivesse participando das minhas aventuras, em lugar de apenas povoar meus sonhos. É disso que a matéria-prima da vida é constituída: ansiar por algo que não temos, que está distante. É o que nos faz sair por aí entregando jornais ou fechando grandes acordos. Ao menos, o mundo estava cheio de paixão voando por todo lado, mesmo que não acertassem muita coisa. Os amores são aves cegas.

5 - Às vezes, tenho a sensata impressão de que já ouvi todos os papos. Todas as conversas já foram tidas, são assuntos cíclicos. Por isso, abandonei as discussões e os debates, nunca se chegava a lugar algum. E eu já sabia há algum tempo que a melhor forma de tirar da cabeça algo que estava incomodando, era fazendo um furo nela.

6 - Parei para observar o oceano. Observar é um termo pequeno para o que eu fazia com os mares e as marés. Era como se eu conseguisse sentir ele de uma maneira superior. Eu chamava aquilo de contemplação. Fiquei parado na areia, a espuma branca dançava graciosamente ao forte vento e tive vontade de filmar aquilo. O mar revolto quebrava, ia e voltava. Fazia frio. Os litorais são como vírgulas, já disse certa vez, continente nenhum tem ponto final. Acabaram me chamando e fui embora. Eu realmente gostaria de ser um rio.

7 - As pessoas que caminham pela rua me interessam, naturalmente. Gosto de observá-las, ler seus pensamentos óbvios. Sento em um banco e fico esperando algo acontecer. Na rua, todos estão carregando consigo seus objetivos em uma sacola. Posso ver a marca das grandes lojas: sonho; anseio; emprego; amor; amizade; problema; dívida; decisão; viagem; novidade; morte. Cada um desses grandes conglomerados comerciais que estampam as sacolas que carregamos por aí.

Epílogo - Aguente firme querida, é um mundo muito louco.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

No Inferno - Parte 2

Então os dois britânicos (ainda estava encucado com a questão da nacionalidade) começaram a me explicar como funcionava o sistema político do inferno. Logo fiquei sabendo, para minha extrema surpresa, que Lúcifer já não era o diabo há muito tempo. Alguém se cansara de seu nepotismo facilitando as coisas para os primeiros anjos caídos e tentara um golpe de estado. Lúcifer não deixou por menos e contra-atacou, a guerra civil durou um tempo, mas logo se formou um governo de coalizão com representantes das duas frentes para fazer uma transição pacífica para a democracia, a qual todos acabaram concordando que funcionaria melhor ali.

Acabou que o primeiro diabo eleito no inferno foi o próprio Lúcifer. Até que o inferno parecia mesmo com o Brasil! Ele afirmava em sua campanha que já planejava mesmo acabar com a sua monarquia eterna, afinal, foi na luta por representatividade que ele fora expulso do céu lá no início dos tempos.

Fiquei sabendo ainda que qualquer um poderia se candidatar para cargos menores, como o candidato a demônio distrital ali no palanque, e ir subindo dentro do sistema. Surpreendentemente, soube ainda que a corrupção no inferno era praticamente inexistente, graças à política de tolerância zero: quem fosse pego em qualquer crime contra a ordem pública tinha sua pena eterna dobrada.

Na escada que dava para o palanque, vi que o Steinbeck precisava ser contido por alguns seguranças, pois ameaçava invadir o palco. O homem estava embriagado, e pedi ao Tolkien e ao Wells que me ajudassem a resgatá-lo. Wells ainda comentou que aquilo andava cada vez mais frequente desde que o Steinbeck perdera uma votação para demônio regional II, um cargo importante.

Como já havíamos nos entediado da discussão política, e o Tolkien atentou para o fato de que estava quase na hora do poker, saímos dali. Eu tinha uma infinidade de perguntas para fazer para aqueles três, e milhares de assuntos que gostaria de conversar, mas decidi agir normalmente, mesmo sem entender muito bem o que estava acontecendo.

Chegamos ao local do poker e o Bukowski já estava bêbado. Abraçou o Steinbeck e o xingou de filho da puta, o Wells se juntou a eles e voltaram a falar de política. O Saramago pacientemente contava e separava as cartas, sentei ao lado dele e começamos a conversar sobre as particularidades e as origens dos naipes do baralho. Já estavam ali também o Asimov e o Clarke reclamando sobre o atraso que levava para as novidades tecnológicas chegarem ao inferno, e ainda o Hemingway, quieto em um canto bebendo whisky.

Então chegaram juntos o Kundera e o Kerouac, discutindo alto, quase brigando, sobre algum assunto que eu não cheguei a ouvir do que se tratava. Nessa hora o Saramago já discorria sobre as diferenças de textura na gramatura de diversos tipos de papel, e o Veríssimo saiu do banheiro ajeitando o zíper.

Com vários assuntos correndo em paralelo, eu andava de roda em roda em êxtase por estar ali com os meus autores favoritos antes de um importante torneio de poker. O Kerouac me ofereceu uma bebida e aceitei prontamente. O Hemingway andava impaciente e interrompeu a todos dizendo que só faltava o filho da puta do King para o jogo começar e que deveriam ao menos decidir os lugares. O Bukowski mandou o Hemingway tomar no cu e disse que não teria mais paciência com os seus rompantes, Wells e Asimov deram uma de turma do deixa disso e controlaram os ânimos.

Enfim o King chegou fumando um charuto enorme e mandou que todos se sentassem que ele pagaria a primeira rodada. O Saramago se antecipou e já foi tirando as cartas que definiriam as posições onde cada um deveria sentar. Fiquei entre o Clarke e o Kerouac, o botão era o próprio Saramago, o que deixou o Hemingway desconfiado do carteado honesto, small blind era o Asimov e big o Bukowski, em seguida o Hemingway, Kerouac, eu, Clarke, Kundera, Wells, King, Veríssimo, Steinbeck e Tolkien. A mesa estava superlotada, mas não nos importamos.

O jogo transcorreu quase normalmente, as rodadas de bebida eram pagas em turnos pelo King, Kerouac, Wells e pelo Veríssimo, o Bukowski serrava um charuto do Tolkien por mão. Comecei a reparar nos estilos de jogo, o Kundera tinha um estilo mais contido, jogava poucas mãos, parecido com o do Steinbeck, com a diferença que esse sempre fazia apostas altas quando estava em posição, saindo nas outras situações. O Hemingway e o Tolkien já eram mais agressivos, entravam sempre e gostavam de apostar para deixar o adversário sob pressão. O Kerouac era o mais desbocado, jogando o psicológico dos adversários. O Wells sustentava um estilo neutro de jogo, quase sistemático, escolhendo muito bem as mãos que participaria, mas sem fugir muito. Dessa forma também jogavam o King e o Asimov.

Após algumas horas todo mundo já estava meio bêbado, e depois de várias discussões, alguns impropérios e ameaças, o campeão acabou sendo o Clarke. Eu terminei em quinto, atrás ainda do Kundera que foi vice, Asimov em terceiro, e Wells em quarto.

Alguns dos caras queriam iniciar um cash game para correr a madrugada, mas eu senti que precisava ir. Saí meio sem rumo pelo inferno, cambaleando pelas bebidas que haviam me pagado, e com a promessa de que certamente voltaria na semana seguinte para mais um jogo.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

No Inferno - Parte 1

Quando eu morri, a primeira coisa que fiz no inferno foi procurar os meus escritores favoritos.

O primeiro problema a me preocupar assim que tomei a decisão de fazer isso foi se cada nação teria o seu próprio inferno. Nesse caso, eu encontraria no máximo o Veríssimo, mas então preferiria que ele houvesse mesmo ressuscitado e ficasse apodrecendo em alguma praça.

O inferno brasileiro provavelmente seria repleto de cariocas falando sem parar, e certamente seria governado pelo Getúlio. Haveria uns portugueses sodomizando a população e toda sorte de europeus fodendo as pobres almas brasileiras de alguma forma. Faria um extremo calor sem nunca chover, mas não haveria praias ou sombra, apenas mosquitos por toda a parte, zumbindo e picando todo mundo.

A segunda coisa que me preocupou foi a dificuldade que eu teria em encontrá-los. Eu nunca acreditei nem desacreditei em reencarnação, afinal eu nunca havia morrido (que eu me lembre) para saber sobre isso. Acontece que no caso dela não existir, haveria no mundo muito mais gente morta do que viva, imaginem a superpopulação do inferno em uma perspectiva dessas. Procurar meus autores favoritos seria como procurar o Hemingway em Cuba.

Logo percebi que o inferno estava relativamente vazio. Deveria haver algum tipo de vazão às almas, seja por reencarnação, seja elevando-as ao limbo, paraíso ou qualquer lugar superior. Na verdade, sempre acreditei no conceito de inferno dos antigos gregos: todos vão para lá, independente de índole, não há paraíso com cordeirinhos e leõezinhos andando juntos, nem sujeitos vestidos de branco tocando harpa. Para o diabo com essas concepções. Oras, precisei admitir a possibilidade de eu estar errado.

O problema é que eu não tinha certeza sobre nada. Não teve um filho da puta para me receber e dizer para onde eu deveria rumar, me mostrar as instalações, ou ao menos dizer “olha cara, você vai ficar naquele lago de fogo ali do tormento eterno”. Tudo era muito subjetivo, uns caras queimando aqui, outros carregando pedras enquanto levavam chibatadas ali, alguns outros sofrimentos variados, uma galera sendo enrabada, e, basicamente, era isso.

Até, por um breve momento, achei que eu devesse mesmo era ficar ali parado esperando meu sofrimento supremo. Mas que se fodessem todos os demônios, saí caminhando.

Comecei a perguntar se o local era dividido por nações, castas, raças, origem social, épocas ou qual outro tipo de organização. Ninguém parecia querer me dar muito ouvidos, apesar de todo mundo se entender. Percebi que não se falava português, inglês ou latim, não se falava idioma nenhum, nós simplesmente nos entendíamos.

Depois de alguns minutos, um sujeito decrépito, com a pele totalmente queimada e deteriorada resolveu conversar comigo. O cara parecia estar ali há milênios e andar completamente entediado, mas me disse que não havia nenhuma unidade temporal no inferno. Sofrimento eterno era eterno mesmo, e incontável.

Perguntei se ele havia visto o Bukowski recentemente. Caso eu estivesse errado quanto ao conceito de céu e inferno, aliás, caso todos os gregos estivessem errados, um cara que eu sabia estar naquele lugar era o Bukowski, não havia como ele ter ido para o paraíso. O cara não sabia de quem eu estava falando (mais tarde descobri que ele havia morrido na epidemia da peste negra), mas me informou que havia um lugar onde os literatos se reuniam para jogar poker todas as terças-feiras.

Achei meio contraditório os caras se reunirem às terças-feiras, visto que ninguém dividia o tempo em unidades temporais por ali. Qualquer dia poderia ser terça-feira ou qualquer outra coisa.

Continuei andando e perguntei para alguém que dia era hoje. Uma vez soube da história de um homem que morreu e passou sete anos no cemitério acreditando ainda estar vivo, mas sem entender porque não conseguia sair de lá. Minhas memórias de vida ainda estavam bem intensas, mas não havia como eu ter certeza de que morrera naquele mesmo dia ou há vários séculos.

De qualquer forma, acabei encontrando o Steinbeck na mais pura coincidência: parei para mijar atrás de uma árvore e ele estava lá mijando também. Gritou que a porra da árvore era dele, pedi desculpas e tentei iniciar um diálogo. Saí-me tão bem que acabamos indo ao boteco tomar uma cerveja.

No boteco, o Steinbeck começou falando alto e expondo seu ponto de vista sobre algumas injustiças que ele acreditava estarem acontecendo ali no inferno. Não entendi bem o problema, mas reparei que ele foi ficando mais soturno conforme alguns sujeitos entravam na conversa, concordando e discordando pelo bar.

Subitamente, ele se levantou e saiu. Tentei em vão segui-lo já sabendo que ele iria ao torneio de poker, mas acabei o perdendo de vista no meio da turba. Lá fora, a confusão era maior ainda. Alguém havia montado um palanque em uma praça que ficava bem em frente ao bar e discursava fazendo sua campanha política, concorria ao cargo de demônio distrital.

Reparei com grande alegria no Tolkien e no Wells conversando ali no meio da plateia, junto com a galera. Fui me aproximando devagar para não parecer um fã desesperado, mas os dois me viram e me chamaram pelo nome para que eu me juntasse a eles. Eu estava mesmo com sorte.

Continua...

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Beligerante

Soy como un pajarito
Que perdió las sus alas
Un pajarito sin alas
Ya no puede volare

Será que ainda há quem acredite que o Sol não passa de um disco no céu? Um círculo amarelo no arco do azul infinito, cavalgando como cavalgou sob as rédeas de Apolo, como viajou nas asas de Rá, girando em torno da Terra, planeta estático por excelência. Será que ainda há quem veja o amarelo sem saber que ele é, na verdade, branco? Nessa mistificação tão verdadeira quanto as anteriores, de séculos borrados em documentos antigos, antes das fotografias. O conhecimento é um inseto raro. Ver. Vislumbrar. Surpreender-se com o que aparece como novidade, como verdade absoluta. Toda verdade absoluta é uma mentira que deu errado. Que deu muito errado.

Observo aos meus pés um passarinho ferido. A pequena avezinha anda cambaleante de um lado para o outro, corre assustado e bica um farelo no chão, pula desconcertadamente. Suas asas não servem mais para nada.

Quem nos deu a liberdade de decidir pelo futuro dos outros seres viventes não fazia a menor ideia do que estava fazendo. Poderia pisá-lo, esmagá-lo com meu peso imensamente superior. Isso certamente acabaria com sua angústia. Imagino que ser uma ave e não poder alçar vôo, frequentar as correntes de ar, subverter a gravidade, seja a coisa mais angustiante dentre todas as perniciosas decisões da existência.

Mas não tenho razão alguma para acreditar que ele sofre. Apenas projeto meu suposto tormento em não poder utilizar minhas asas nessa frágil criaturinha. O que a avezinha é capaz de fazer ou não com suas asas, membro que eu não possuo, é uma situação com a qual ela está preparada para lidar, muito mais do que eu.

Quem dera eu desenvolvesse asas. Gostaria que elas nascessem durante uma noite mal dormida, na qual uma dor na lombar incomodaria e prejudicaria o sono. Pela manhã, eu acordaria e me examinaria no espelho, contorcendo meu corpo para tentar entender a estranha sensação que parece se arraigar desde meus pulmões, atravessando a minha pele.

Oras, são asas! Mas de que elas me serviriam? Meu corpo é pesado e, tal qual as avestruzes e emas, tal qual o miserável passarinho pulando assustado no solo, eu nunca poderia voar.

De vez em quando, tento olhar diretamente para o Sol. Desafio a mim mesmo nessa batalha que não permite vitória. Desejo queimar as minhas retinas, nunca mais enxergar, desenvolver meus outros sentidos e passar as próximas décadas contando para todos sobre a maior batalha que já travei. E perdi.

O lusco-fusco é o resultado do melhor horário do dia. Já não é mais dia, mas ainda não é noite, a melhor luz que existe. O Sol, por um efeito de distorção óptica, já está abaixo da linha do horizonte, mas ainda o vemos. Em alguns dias, ele fica tingido de um vermelho muito mais forte, como as estrelas gigantes que estão morrendo. Nesses dias é possível olhar diretamente para o Sol sem perder a visão. O disco vermelho desce lentamente. O que ele faz também é uma espécie de voar.

Abaixo do Trópico de Capricórnio não existe zênite. Nunca pude cumprir mais um dos meus desejos: o de não ter sombra. Nossos antepassados deram os nomes às constelações. Fico pensando se eu houvesse pisado aquele passarinho que não podia voar, será que eu seria capaz de transformá-lo em constelação?

Quero vislumbrar todo o resplendor da tua beleza. Mesmo que ceguem meus olhos e eu nunca mais nada veja. Não acho que seja como olhar para o Sol, ou como na história de Sêmele, que exigiu que Zeus aparecesse para ela em toda sua resplandecência. Sêmele nunca mais nada viu.

Não me importo em nunca mais enxergar se a minha última visão, a última memória de impulsos luminosos atravessando a minha retina seja você. Quero ver a curvatura das tuas costas, pontilhada de pequenas e retilíneas elevações vertebrais quando relaxada; uma depressão margeada por um primeiro planalto das omoplatas e por dois sensíveis morros glúteos quando contraída. Quero ver você de frente, seus seios intumescidos caracterizando em forma e tamanho o complemento perfeito para minhas mãos côncavas. Quero ver os teus ralos pelos se eriçarem ao toque da minha pele, se agitarem com a emanação de calor de um corpo em contato com outro corpo. Quero ver todos os detalhes da tua pele, escrutinar cada centímetro quadrado do invólucro da tua bela alma.

Eu nunca soube para onde ir. Nunca soube como te levar. Andei te arrastando por diversos caminhos obscuros, te levando para um lado e para o outro sem destino.

Não quero aprender. Não quero regras de conduta e de condução. Não quero passos ensaiados para a nossa dança. Quero te levar sem rumo. E, se perdermos a visão, ou que eu a perca, vamos tateando, arrastando os pés no chão para evitar os buracos da calçada. Vamos procurando os rumos com o esforço e a dedicação de quem nunca precisou ser guiado.

Como também não precisei guiar o passarinho, não precisei pisoteá-lo. Não tenho esse direito. Posso levá-la, isso eu posso, se você quiser ir.

Posso me sentir só mesmo tendo-a comigo. A solidão está muito mais associada a um estado de espírito do que a companhias. Depois de nascidas as minhas asas eu tentaria voar, não há como dizer que não. Mas fui feito para caminhar sobre a terra, para evitar os buracos da calçada. Acredito que o passarinho pisaria em mim se tivesse a oportunidade e sentisse a necessidade.

Ainda quero ver todo o resplendor da tua beleza. Ainda quero te levar para voar com essas asas recém desenvolvidas. Sem rumo mesmo, por aí, pela noite, ou rumo ao Sol. Olhando para onde quisermos olhar, para o brilho que nos apetecer, para o tipo de luz que pouco importa cegar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Relatividade do Espaço

O isolamento e a aproximação que cada um necessita são variáveis. A distância. O toque. O beijo. O olhar.

São também variáveis no tempo. Constância é uma palavra inconstante. O tempo é relativo, mas disso todo mundo já falou. O tempo-espaço como conceito absoluto é uma coisa alternativa. Falemos de altura, largura e comprimento, o espaço como sempre foi, antes da física quântica.

O espaço entre dois corpos só pode ser alterado pela quebra da lei da inércia. É o que chamamos de atitude. Atitude é uma violação às leis da física. Assim, o universo parece cada vez mais contraditório.

Um dia desses, quase amanheci em queda livre. Parei para ouvir as aves que cantavam em meu peito. Pássaros de pedra em nosso mundo de luz e concreto armado. Se o chão é artificial, acho que deveríamos permanecer no céu. E voar e voar e voar.

Quantos metros? Quilômetros? O espaço é relativo. Um salto de fé é também um mergulho no abismo. Olho de cima do palco, e os poucos centímetros que me afastam do chão são também anos-luz.

Ninguém entende porque esse homem grita. Talvez haja espaço demais dentro dele. Mas é assim mesmo que as coisas são, a distância entre nós é variável. O tudo de alguns é um tanto de nada. Nada para outros já é muito. Longe... Perto... Não faz diferença.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Sobre a Estética da Vida e da Morte que nos Aguarda

É natural que queiramos planejar o futuro. Somos a primeira espécie que possui capacidade de pensar o tempo de maneira analítica a povoar esse planeta. Aliás, inventamos o tempo, portanto somos capazes de pensá-lo como quisermos. Pensamos no passado e no futuro. Conjugamos malditos verbos. Quem liga para o subjuntivo do pretérito? Pensamos demais. É natural, mas isso não significa que é certo.

As pessoas da minha idade deveriam todas estar morrendo. Não se preocupando em acumular matéria física à sua volta, objetos que orbitem à sua massa irrelevante, para que quando finalmente morram, daqui a quatro ou cinco décadas, deixem tudo para que seus herdeiros deixem tudo para seus herdeiros. O que todos esquecem é que o ser humano não nasceu para viver. Nasceu para morrer. Rápido. Antes dos 30.

Gosto de passar minhas horas com quem me faz boa companhia. Um café da manhã antes do trabalho. Uma maluquice extrema pelas ruas na madrugada. Uma tarde de sábado na grama. Um almoço com cara de jantar em um domingo do contrário natimorto. Conversas que são apenas por serem, sem mais explicações. Coisas que passamos a apreciar melhor com a maturidade dos anos.

De uns anos para cá, tenho visto mais beleza nas coisas. Meu senso e padrão estético se tornaram menos rigorosos. Acho que é assim mesmo, a gente vai vivendo mais e as coisas vão ficando mais bonitas. A vida e as pessoas vão ficando mais bonitas. Outro dia, descobri que em uma das luas de Júpiter há mais água do que em toda a Terra. Quem poderia subestimar a superioridade daquele mundo ínfimo e infinito? Infinito porque nunca chegaremos a conhecê-lo. Nem em dez gerações.

É coisa de um ser humano que se aproxima de sua morte. Aproximar é um de nossos verbos que possui conjugação para as quatro dimensões hoje conhecidas. Podemos nos aproximar tanto no espaço quanto no tempo. Tornamo-nos próximos de nossas mortes, mesmo que ela já não chegue mais tão cedo. As pessoas da minha idade deveriam estar morrendo. Não se preocupando com a conta não paga; com o cachorro do vizinho; a chuva do final de semana; ou o senso estético dessa porcaria toda.

Tenho sentido falta de escrever. Tenho sentido falta de amar. O que posso fazer? São meus vícios. Não é possível viver sem eles. Continuamos nos movendo. É o óbvio. É o que precisamos fazer para não morrer qualquer dia com a cara na calçada enlameada pela chuva de início de uma noite de primavera. De toda maneira, parece que passamos mais tempo nos preocupando em não morrer do que em viver. Reitero: as pessoas da minha idade já deveriam estar todas mortas.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A Importância da Mensagem

Não sou o cara mais tecnológico. Costumo dizer que ainda me comunico batendo osso de javali em tambor de couro de mamute na caverna. Meu aparelho celular é um ultrapassado Nokia C2-00 todo riscado e repleto de marcas de quedas. Não tenho smartphone, não tenho iPhone, não tenho whatsapp.

Gosto da comunicação rústica, tradicional, na qual é necessário olhar nos olhos do interlocutor, não em uma bolinha verde que anuncia a sua presença virtual. Sou um emissor e receptor à moda antiga. Isso se dá, parcialmente, porque sempre acreditei que a comunicação assim é mais sincera e menos imediatista.

A internet e as novas mídias digitais geraram uma comunicação feita para acabar no instante seguinte, uma comunicação que se apaga e é esquecida no exato momento em que é captada. A mensagem não é mais feita para durar. Vemos exemplos disso no formato da timeline do facebook e do twitter, e em aplicativos como o snapchat.

Por isso, decidi desenvolver um novo projeto. A Importância da Mensagem consistirá em cartões postais contendo antigas sms’s que se encontram na pasta de arquivadas de meu Nokia, que já utilizo há quatro anos, e foram de destacada importância para mim em algum momento especifico da minha vida.

Simples mensagens, que são também óbvios frutos da tecnologia, mas as quais escolhi não perdê-las, não deixar que rolem com a timeline da vida para baixo e sejam esquecidas. Encontram-se arquivadas, e antes que meu telefone pare de funcionar, antes que passemos a esquecer o que de belo foi dito, elas passarão para o papel, e voltarão para seus emissores e receptores sob um novo formato.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sobre Ser Todo Mundo

Acho um absurdo gigantesco a gente ser apenas uma pessoa. Nessa perspectiva, a experiência na existência se torna extremamente egoísta. Existir habitando um único corpo e uma única mente não só nos priva das experiências que a multiplicidade de corpos e mentes é capaz de proporcionar, como também faz de nós criaturas que não vivenciam a individualidade do próximo como ela deveria ser vivenciada.

Nos parece impossível compreender o que o outro está sentindo ou pensando. Todo mundo parece distante de todo mundo. O que cada um de nós tem em comum com qualquer um dos outros? As experiências que nos aproximam são as mesmas que nos afastam, pois que cada um tem a infame mania de ser dono de sua opinião e seu ponto de vista como se fossem as verdades absolutas.

Há tanto para sentir, tanto para ver, tanto para existir, que se torna simplesmente inconcebível que a gente seja uma pessoa só. Uma única consciência completamente separada das outras infinitas consciências faria do mundo um lugar de universos isolados, de planetas em órbitas particulares, de eternos não-encontros. E não é o que somos.

Somos criaturas que se esbarram toda hora, que lamentam a dor alheia, que se abraçam, que compartilham alegrias e tristezas, que caminham sob um mesmo Sol e uma mesma Lua. É impossível, então, que não possamos, em um avançado estágio de evolução, ser, mesmo que momentaneamente, outras pessoas. Ser todas as pessoas. Ser quem quisermos ser quando assim desejarmos.

Em alguns momentos raros de outrora, tive a oportunidade de experimentar coisas parecidas com fugas da minha personalidade para habitar a personalidade alheia. Foi quando estive em contato com um eu que definitivamente não está isolado, que não é um só. Foi quando eu vivi dentro de outras personalidades que eu sei que existem de maneira física por aí.

Um dos meus maiores sonhos é algum dia ter a capacidade de ser essas outras pessoas. De quebrar a barreira desse absurdo intangível da individualidade, da consciência limitadamente egoísta. Sentir, ver e existir tudo o que há para existir, em todos os lugares. Ser algum dia todo mundo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Não Paga Bem

Eu já te disse, baby, que o amor não paga bem
Mas que compensa, não há erro, isso é certo meu bem
Você vai ter que mendigar, vai chorar rastejar
Vai perder o teu tempo tentando o recuperar
Eu já te disse, meu bem, o nosso amor não foi normal
Mas que valia, isso é certo, nos fazia um bem total
Você vai ter que esquecer, vai correr arrepender
Vai perder o teu tempo tentando o entender

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

No Bar do Pedro

O primeiro Pedro que conheci na minha vida foi meu avô, há quase três décadas. Foi por essa mesma época que conheci também o interior, com suas estradas de chão, com seus cheiros de animais em cidades minúsculas, com as árvores e arbustos de folhas marrom, assim deixadas pela poeira acumulada nos dias quentes... Com sua música caipira.

Naquele ano em que conheci o interior, meu avô já passava dos 60. Hoje, Seu Pedro ainda trabalha todos os dias, com seu criativo ofício na marcenaria, desenvolvendo sempre uma nova engenhoca de madeira. Hoje, moro às margens da cidade grande, da agitação frenética e das árvores com troncos pintados de branco para evitar pragas, o marrom da poeira substituído pelo cinza sem vida do asfalto.

No interior, o som da viola caipira é regra, nunca exceção. O cantos dos passarinhos é frequente, não raridade. O Tuiuiú e o Cardeal são mais ouvidos. Aqui, ouvimos o barulho dos carros na rua. Ouvimos a sirene da polícia e a reclamação exagerada do vizinho insatisfeito.

Mas aqui, o mais novo Pedro que conheci na minha vida, e já perdi a conta de quantos são, não se abala. Pede para a dupla caipira baixar um pouco o som e continua dançando. Continua celebrando seu aniversário, distribuindo garrafas de cerveja. Tuiuiú e Cardeal puxam os parabéns, cantam e recantam a ode ao aniversariante, também dono do boteco.

Uma dezena de senhores com cara de interior congratula o Pedro. Andam para lá e para cá dentro dos menos de 30 metros quadrados do bar, com a cerveja que, pelo menos até acabar a grade, é na conta do Seu Pedro.

Tuiuiú e Cardeal continuam cantando músicas que já ressoam há muito mais tempo do que as quase três décadas que se passaram desde que conheci o interior. Músicas que evocam o interior em seus acordes. Formamos uma ilha na cidade em plena quarta-feira. A música é as estradas de chão, é os cheiros dos animais, é as árvores marrons e os passarinhos. É o Tuiuiú e o Cardeal, e é o Seu Pedro.

domingo, 12 de julho de 2015

Chuva

Me apaixonei pelos céus plúmbeos há muito tempo, nem me lembro quanto. Mensurar o tempo é como mensurar a chuva, só podemos estabelecer um parâmetro de comparação em vista de uma pequeníssima coleta que fazemos. A chuva é muito mais do que apenas milímetros cúbicos. Isso seria como dizer que o tempo é apenas alguns segundos. Por isso, me apaixonei pelos céus plúmbeos há imensuráveis milímetros cúbicos.

Não posso confiar em quem nunca dançou na chuva, em quem nunca parou tudo o que estava fazendo para observar a queda das gotas no chão já encharcado, em quem nunca admirou o alegre farfalhar das árvores ao receber a água em suas cabeças, em quem compra um guarda-chuva a cada chuva. A chuva é uma das coisas mais vivas que existe.

Me admiram os vendedores de guarda-chuvas, saídos de lugar nenhum, na noite fria de sexta-feira na entrada do shopping. Anunciam seus produtos como quem anuncia a salvação para as mazelas do mundo, a panaceia que curará peste, guerra, fome e morte, deixando até mesmo os quatro cavaleiros sem emprego.

Não conseguem perceber como estão errados com suas frágeis armações de aramado e plástico, vendendo o mesmo produto para pessoas que confirmam, sem constrangimento, já terem dois ou três semelhantes aquele em casa. Como estão errados em oferecer uma proteção subjetiva, totalmente imaginária, para pessoas que têm medo de andar alguns passos sob as águas.

Torço para os raios e os trovões. Comemoro a chegada das nuvens escuras. Desejo o aguaceiro, a tempestade. Felicito a enxurrada, a garoa, o vidro da janela molhado. Não há nada de errado em se molhar. Pelo contrário: o erro está em fugir da chuva. O erro está em não gostar da chuva, em não gostar de caminhar tranquilamente sob ela.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Tanto Faz

Um dia desses, percebi que uma das maiores homenagens que uma pessoa pode render a alguém é lhe oferecer o seu ódio. Afinal, é necessário muito tempo e muito pensamento direcionado para odiar uma pessoa. É necessário muita entrega. Ódio não é fácil de sustentar. Se alguém te odeia, essa pessoa precisa estar constantemente pensando em você, e você precisa fazer uma enorme diferença na vida dela.

O ódio não é o oposto do amor. Uma das maiores afrontas que você pode fazer a alguém que te odeia, é gostar do que ela faz. Dançar à sua música. Lamentar à sua ausência. Expor comentários positivos sobre a performance dela no que quer que ela seja especialista. Inimizade despende uma grande quantidade de esforço. Amizade é muito mais fácil.

Outro dia percebi também que o pior de tudo é o tanto faz. Tanto faço e mesmo assim tanto faço. Tanto faz é neutro, vago, irrelevante. Prefiro o ódio. É um sentimento mais sincero. Gosto de ser objeto de ódios alheios. Tanto fazer é quase nem existir. Sinto que todos os meus tanto faz direcionados acabam sendo esquecidos, apenas deixados de lado. Deve ser assim com todo mundo.

Mas eu amo amar. Um fato é que não há equivalência entre todos esses sentimentos. E apesar deles não serem iguais, não é possível determinar qual é mais importante, ou mais intenso, ou mais venerável e desejável. O importante é sentir, é deixar o coração pulsar, o estômago titubear. Nenhum sentimento é ruim por essência. O importante é não ser tanto faz.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Os Filhos da Noite

Nyx nefasta, deusa primordial, filha do Caos, mãe de uma dezena de seres controversos. Nós próprios somos os filhos da Noite. Somos o Destino e os Sonhos; o Sono e o Sarcasmo; as Moiras e a Velhice; a Ternura e a Morte; a Discórdia e a Vingança também. E mais, muitos mais.

A linhagem da noite, ascendente do Caos, descendente direta do início de tudo o que há. Como personificar os irmãos em alma e corpo visíveis aos olhos mortais? Seres impensáveis, da Noite vem Thanatos, na teia de Morus da fatal Ceres, trazida por Hypnos, com Geras também, vítima de Éris ou Nêmesis.

Todos somos filhos de Nyx. Dançamos a dança das Horas, envolvidos no Caos profundo, pai de todas as lúgubres coisas das vias funestas. À Noite, envolvidos pelo manto obscuro, andamos acompanhados, queiramos ou não, por essas criaturas agoures. A Morte e o Sono são irmãos gêmeos, andam lado a lado. A diferença entre os dois é imperceptível. A Ternura e o Sarcasmo irmão são também. Tênue linha os separa.

A prole de Nyx, linhagem nefasta, decididamente personificada se encontra em nós. Gerada no Caos. Tudo o que há de doloroso é assim belo também. Nem tudo é só dor, nem tudo é tão grave, vem tudo da Noite. Cada um desses seres tem filhos também, os quais somos nós, descendentes de Nyx, e também do Caos.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Intensidade


Devemos intensidade a nós mesmos
Vamos amanhecer loucamente
Vamos enlouquecer todas as manhãs
Quero que meu coração bata tanto e tão rápido
A ponto de parar
Só acredito em corações malucos
Só acredito em intensidade
Não recebemos essa vida
Para desperdiçá-la
Devemos queimar
Arder em fagulhas que explodem
Nos céus iluminados por nós
Precisamos viver cada curva
Dar tchau para cada dia
Celebrar cada erro
E comemorar ainda mais cada vitória
Quero que meus olhos ardam
Sob a fumaça de seus cigarros
Sobre o calor de seu corpo quente
Quero a loucura
O poder mágico de andar desequilibrado
As festas que nunca acabam
E que quando acabarem faremos as nossas
Devemos retribuir a vida ao mundo
Não acredito em redenção
Mas acredito na glória de fazer aquilo que se quer
De verter lágrimas intensas e sinceras
De voltar aos lugares que um dia conhecemos
Subir nas mesas e dançar
Afastar o solo
Que sucumbirá em respeito a nós
Devemos isso a nós mesmos
À vida que nos agraciou com todas as suas possibilidades
Ao tempo que
Se nos priva das oportunidades passadas
Não nos deixa esquecer
Vamos enlouquecer
Vamos viver
Só acredito em intensidade
Só penso intensamente

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Busca


A escória está nas ruas, ocupando todos os espaços vazios. Basta ver. A podridão está por toda parte. Todos nós vomitamos nas ruas, compactuando com a ralé. Nós todos somos a escória.

A miséria está nas ruas, a miséria está nos hospitais. Basta olhar. A miséria humana, a ralé humana, não está escondida nos buracos, nos becos sombrios. Ela está nas filas dos hospitais, nas ruas onde vomitamos pus.

Basta prestar atenção. O desastre, a desordem da sua vez. Todos são a miséria, a podridão, a ralé, a escória, a fila dos hospitais. Todos estão no desastre. Ninguém escapa.

Somos a angústia. Aquele objetivo inalcançável e a procura por algo que nunca poderá ser encontrado. Buscamos pelos espaços vazios das ruas, das filas dos hospitais.

Buscamos em todos os lugares. Objetivos são distração. Basta tentar entender. Cada um deles, cada pequena vitória pessoal, é um minúsculo degrau em uma escadaria infinita, a qual nunca poderemos galgar.

Nunca atingiremos essa busca. Somos a angústia. Somos aquilo que nunca será encontrado. No desastre, na desordem. Podemos passar a eternidade tentando, e basta prestar atenção, continuaremos sendo a angústia.

Miséria. Podridão. Ralé. Escória. Continuaremos sendo a distração. A angústia de nunca encontrar, de nunca ser o suficiente. Ninguém escapa. Basta olhar. Basta ver.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Mistérios


“Repassem a informação: a realidade está se dissolvendo!”. Isso gritava o maluco na rua, chamando a atenção de alguns dos transeuntes que passavam, mas logo voltavam às suas atividades rotineiras de não prestar muita atenção em qualquer doido dessa cidade. Sentei no banco da praça e fiquei esperando, queria ver até onde o maluco iria, em seus devaneios.

Você é um livro que está escrito em outro idioma. Houve uma época em que eu queria ser poliglota, fazer trocadilhos estúpidos em todas as línguas. Saber traduzir saudades. Hoje, eu abro as suas páginas e não entendo nada. Você é uma coleção de hieróglifos. É um alfabeto cirílico de cabeça para baixo.

Mas tenho mesmo sentido a minha cabeça meio flutuante, como uma folha à deriva no rio, procurando o oceano mais próximo, sendo que cada pequeno córrego é uma artéria irrigadora. Os glóbulos brancos são as folhas caídas.

Tenho ficado fraco em metáforas. Acho que meus devaneios são culpa da anemia. Corpo fraco, metáfora fraca. A folha continua flutuando, viaja sobre águas que nunca voltarão. O que mantém um rio em seu curso é a potência das águas que vêm atrás.

Tento decifrar as tuas páginas, mas não compreendo. O estranho é que sei que ali está escrita uma história maravilhosa. Tenho certeza absoluta da qualidade de cada palavra empregada, da habilidade com que cada sentença foi constituída.

O maluco na rua continua gritando. Vai ver a realidade dele está mesmo se dissolvendo. Ainda não chegou a lugar algum.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Taxidermia


O nosso amor morreu naturalmente
Ele nunca sofreu as indizíveis violências
Da extremada paixão
Ele nunca respirou ofegante
Após o baque do choro vertido
Ele nunca se escondeu de si mesmo
Em buracos sombrios infrangíveis
Nosso amor foi vivaz
Foi luzeiro saliente
Externado e nunca extenuado
Morreu tranquilamente
Morreu naturalmente
Tal qual antes nasceu
O nosso amor não será esquecido
Será embalsamado
Lhe tirarei as entranhas inertes
Preencherei de palha o interior
Taxidermizarei nosso amor
Vou expô-lo na sala de estar
Deixar com que ali permaneça
Baluarte do amor de outrora
E que ainda ali existe
Lembrança bem vinda
De um amor que morreu naturalmente
Que foi taxidermizado
E que nunca será esquecido

terça-feira, 12 de maio de 2015

Sobre a Certeza

Há alguns dias a Lua me pediu um poema. Encomendou a poesia para usar em alguma serenata para seu amante em céus que não ouso caminhar. Me deu os temas, algumas palavras chaves, uma possibilidade de rima e métrica em que ela já estava pensando, e disse “agora te vira”.

Comecei a escrever, e o relógio me parou. Ou me parou o relógio. Meu relógio parou e eu parei, se assim ficar mais bem compreendido. As horas tornaram-se um vulto espesso e gigantesco, praticamente infinito, como uma fabulosa neblina que cobria absolutamente tudo. É certo que a neblina acontece quando o mundo está triste, mas esse não era um poema de tristeza, era apenas um truque do tempo.

Assim eu vi o tempo tomando forma, e ele só fazia isso com o objetivo de parar, de não mais correr. Em meio àquela névoa, percebi que o tempo parou, na verdade, por um objetivo maior: para que eu terminasse o poema que a Lua pediu. Mas o relógio só ficava parado na companhia da Lua, nos outros momentos o tempo se lançava vertiginosamente rumo ao futuro.

O ar me ia faltando, as pernas me iam tremendo. Sentíamos falta mutuamente: eu e o ar. O ar não serve para nada se não houver quem o respire, ou ao menos quem use asas para nele pairar. Haveria um mundo se não houvesse ninguém para presenciar a existência do mundo? O mesmo vale para as horas.

A Lua começou a me apressar, queria logo o poema pronto. Oras, todos temos compromissos, não compreende? Oras, temos compromissos com as horas. Nova, crescente, cheia, e minguante: fases também de nossas vidas. E como outrora dito: tudo minguará.

Mas então percebi que se eu nunca terminar o poema, talvez o relógio possa ficar mais vezes parado em companhia da Lua. Mais tempos para que o tempo seja eterno e me falte o ar. E mais oportunidades para poemizar.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Uma Crônica Lírica de Escárnio e Dor

En los abismos de los años transcurridos
Me quedé a vivir peligrosamente
La sangre no me basta
La muerte no me vence

Qual dor dói mais: a das navalhas lacerando a alma, das lâminas afiadas, o aço pontiagudo, giletes incisivas adentrando profundamente essa alma? Ou a porrada na cara, o sangue que verte, a marca arroxeada que não vai passar, o tiro de bala de borracha? A corrente elétrica passando pelas células nervosas para avisar o cérebro de que algo está muito errado, ou o aperto no peito e a vontade retumbante de gritar loucamente?

Já me acostumei há muito tempo a sentir os objetos cortantes invadindo esse lugar abstrato que se encontra dentro de todos nós, mas ninguém sabe exatamente onde fica. Já me acostumei também a ver o meu sangue fluindo, e com isso o conheço muito bem.

Nossa essência não é formada de uma coisa só, somos corpo e alma, e somos ainda mais. Não há como saber qual das dores é mais poderosa, qual incomoda mais e afeta mais a outra parte. E em alguns casos, pode até haver uma conexão entre as dores, mas no geral uma delas sempre dói mais.

A dor que sinto é estimulante. Uma vida é paródia da outra, vivemos em círculo. Somos paródias de nós mesmos. Uma dor é consequência da outra. Elas vêm em círculo também. Ah se meu corpo pudesse gritar! Ah se a minha alma pudesse sangrar!

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Tempo

O universo tem uma maneira curiosíssima de lidar com as coisas, pelo menos até o ponto em que podemos interpretá-lo. Somos criaturas de quatro dimensões, sendo uma delas impalpável, nossa capacidade de entender o que cerca nosso planetinha é limitada demais.

Sabe-se que não é possível calcular com exatidão tanto a velocidade quanto a posição de uma partícula ao mesmo tempo, só podemos ter um desses dados, a leitura de um compromete a própria existência do outro. Se algum dia o ser humano for capaz de saber com precisão velocidade e posição de uma partícula ao mesmo tempo, e eventualmente estender essa capacidade a aglomerados de partículas, seremos capazes de prever o futuro, pois com esses dois simples dados é possível prever exatamente onde essa partícula, ou aglomerado de partículas, estará em qualquer momento vindouro.

Se o aglomerado de partículas for todo o universo, e o ser humano conseguir algum dia calcular isso, poderemos saber com precisão todo o futuro de todo o universo. Assim, essa é uma teoria física que, de certa forma, prevê a existência do destino. Ao sermos capazes de saber onde as partículas estarão, poderemos ser capazes de alterar seus cursos, mas essas alterações são praticadas por partículas, pois que afinal somos amontoados de partículas também. E dessa forma, mesmo essas alterações poderiam ser previstas.

Nossas decisões mais independentes, praticadas no interior de nossas sinapses cerebrais, não são mais do que trocas de informações entre partículas, que, segundo essa teoria, podem ser previstas também. O livre-arbítrio é nada mais que conexão de partículas, e pode ser predito.

O tempo passa. E ainda não podemos prevê-lo, não podemos brincar com ele, alterá-lo. Nada disso é real, amontoados de partículas também. O destino pode nos fazer receber visitas, e escrever poemas épicos que ele já sabia que escreveríamos. Todos nossos amores, ódios, amigos e inimigos, todas as vezes que você já pisou no cocô do cachorro na calçada da frente de casa até hoje, tudo isso, passa como o tempo. E fica para trás. Como uma caixa escondida no fundo do sótão, que você não consegue alcançar, por mais que tente.

E podemos dizer que nossos sentimentos são as únicas coisas que nos conectam aos tempos em que não estamos. A lembrança de algo é a existência daquilo que está no passado e não existe mais. Mas ali naquelas partículas transitando no cérebro, aquilo ainda existe. E viaja no tempo.

Me sinto como a velha árvore que se curva sob a força do vento. Me sinto como aquela caixa do fundo do sótão, nunca alcançada. Ando pelas ruas desertas de madrugada, e me sinto como a lâmpada do poste, que há anos observa a noite consciente de que existe para iluminar o caminho de ninguém. O tempo continua passando, e o cansaço vem chegando. Já não sou mais o mesmo, e ainda não é possível prever aonde está indo o amontoado de partículas que sou.

Se for algum dia possível prever o futuro de todas as partículas, seremos capazes de prever também os desígnios do coração. Não das sístoles e das diástoles, isso é fácil. Mas sim das intenções obscuras do coração, das explosões de oxitocina e dopamina. Será possível prever o amor, a forma de agir do coração apaixonado.

E nem A nem B nem C têm culpa. Aparentemente, a culpa é das partículas. A culpa é do tempo, que corre e movimenta cada partícula. Que gera transmissões cerebrais, e explosões hormonais, e nossas ações e inações, e os amores e desamores.

Mas essa teoria pode estar completamente errada. Podemos nunca ser capazes de prever nada, porque talvez não haja o que prever. Talvez, e só talvez, as sinapses sejam mesmo livres. E nossos amores também surjam sem estarem pré-programados para acontecer. Talvez o tempo e o destino não façam com que as coisas sejam da forma como eles querem, mas apenas deem as cartas, e jogamos com essas cartas como queremos e podemos.

Talvez o universo tenha mesmo essa maneira curiosa de lidar com as coisas. E talvez isso aconteça porque ele também se surpreende com o inusitado, com o que ele não imaginava que aconteceria, e ache isso engraçado. Todas essas memórias. Todos esses amores. Todos esses amontoados livres de partículas. Eu prefiro que seja assim.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Nuvens

Imagine ser mais leve que o ar. Imagine flutuar. Imagine não ter essa constituição física de forma constante. Imagine viajar no azul distante.

No abismo acima da Terra, a imensidão se expande infinita para todos os lados. Mas antes dos confins mais distantes, pairam sobre nossas cabeças essas massas gasosas disformes, brancas e singelas, assustadoras as vezes. Imagine ser um avião, e cruzar essas formas, arrebentá-las e espalhá-las como um valente leão selvagem espalha a manada de zebras na savana. Mas isso não é voar, não se voa sentado confortavelmente dentro de uma caixa de alumínio.

Para voar, é necessário ser mais leve que o ar. Se desprender das amarras terrenas, dos laços intransponíveis que nos prendem ao chão. Quebrar barreiras invisíveis, constituídas de nitrogênio, oxigênio, argônio e gás carbônico. E subir. E depois, talvez até chover, cair e voltar ao curso de antigos rios. Mas ser, enquanto se puder ser, enquanto se puder escolher, ser uma nuvem. E pairar. E flutuar.

Ao subir, e subidos, destacamos sombras de nosso corpos disformes. Somos fumaça, estamos em tudo que é gasoso, e à temperatura certa, tudo é gasoso, tudo flutua ou pode flutuar. Nossa sombra atirada sobre a terra é um vestígio comprobatório de que somos coisas físicas. Voar não é sonhar, é palpável. E chovemos. Talvez seja isso o que de mais belo fazemos. Voar e chover. Cair em deságues, em vertentes, em pluvianices. Toda queda livre é uma vida inteira por si só.

Cobrimos as Luas. Cobrimos os Sóis. Durante o dia, refletimos luz. A noite, somos invisíveis no breu. Mas mesmo não visíveis, cobrimos outras luzes. Por onde anda a minha estrela? Onde está aquela bela Lua? Ainda está lá, com sua auréola argêntea, mas não é vista por trás das nuvens. Tudo o que está por trás dela, no espaço infindável, não é visto por trás das invisíveis nuvens noturnas.

Quando somos nuvens, o céu inteiro é pouco. O mundo inteiro é pouco também. A vida inteira é pouco. Voamos, flutuamos, pairamos no ar, vendo o mundo lá de cima. É tão bom ser nuvem. É tão bom ser leve. É tão bom voar.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Breaking Old Bonds


Ossos precisam ser quebrados de tempos em tempos, para que os calos criados no local de seu rompimento se calcifiquem melhor e se fortaleçam. É uma necessidade da vida, precisamos adoecer, a forte gripe que temos no começo do inverno nos fortalece para os vindouros meses de frio. É necessidade costumaz também que nos cortemos, nossas cicatrizes endurecem e criam uma couraça em pele outrora tão fina.

Por outro lado, por vezes, é necessário também abandonar as cicatrizes, deixá-las para trás. Precisamos nos despir de antigas companheiras que há tanto tempo nos acompanham, que já se tornaram marcas quase indeléveis. É preciso cortar novos cortes. Quebrar novos ossos. Desenvolver imunidades diferentes a doenças indiferentes.

E é inevitável comparar experiências, então olhamos para trás, e para frente ao mesmo tempo. E dizemos que ano passado foi assim. Oras, queremos saber do agora, esperamos sempre que a nossa experiência atual tenha mais a nos ensinar do que a anterior. Ano passado era assim, esse ano também é, só que é outro assim, quem sabe se um melhor.

Para isso mesmo devemos quebrar antigas correntes. Mesmo que sejam correntes maravilhosas. Que sejam ligações sempre desejadas. Elas precisam ser deixadas para trás. As coisas seguem um fluxo constante, os ossos fatalmente se calcificam, mesmo sem gesso algum. Precisamos das novas doenças, e das novas brigas. E podemos sim acumulá-las contiguamente às anteriores, mas as vezes, talvez só as vezes, é preciso abandonar tudo o que havia para trás. E buscar novas cicatrizes.

terça-feira, 17 de março de 2015

Almas Pulsantes

Se a vida fosse mesmo uma grande festa (e já disse que quero morrer em uma delas, mesmo sabendo que ninguém morre de vodka, morre-se de amores e de terrores, nunca de vodka), e de festa se vive; se assim a vida fosse, a maior festa de todos os tempos, seríamos criaturas mais dançantes. Bailaríamos com a vida, a tiraríamos para dançar.

Senhora vida, conceda-me o prazer desta dança, ou dançarei com a morte.

Somos criaturas pouco práticas, caminhamos em direção ao Sol, mas não vivemos de extremismos, de extremismos é que se morre. Ficamos parados esperando que a vida nos tire para dançar. Aí então dançamos com a morte.

Mas nem todos. Não, nem todos mesmo! Há aquelas almas pulsantes. Há uma gente maluca de toda sorte, que dança com a vida, e baila além da morte.

Como as dançarinas da alma, que bailam ao som do palpitar dos corações ao seu redor. Como os bailarinos que giram. Como as dançarinas que pairam. Como as rainhas e as musas e as deusas. Como gente que nem mesmo sabe dançar, mas quem foi que disse que saber é preciso?, ninguém também nasce sabendo como se vive, e, no entanto, vivemos. Vivemos muito mais do que morremos.

Gosto mesmo é dessas almas pulsantes. Das que me tiram para dançar, e das que nunca recusam a minha dança, quaisquer que sejam os caminhares desses nossos pés malucos. Quaisquer que sejam as vielas da vida, com palco, sem palco, tablado, na rua ou na praça. Quero que a vida seja de mais festas, de mais gente maluca, que aceita o dançar e as suas consequências. Quero mais almas pulsantes.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Sobre a Dissolução do Ego


Domingos não são para descanso. Domingos são subestimados. As tardes de domingo são as mais surpreendentes. O Dia do Sol, dies Dominicus, Dia do Senhor. O primeiro dia da semana, nunca o último. Tardes de domingo de sol são um belo e aconchegante pleonasmo.

Foi dito que quando da formulação da Genealogia da Moral, Nietzsche fatalmente estava sob efeito de um bom meio copo de conhaque. É indubitável a necessidade de diferenciar meticuloso de sistemático. O mundo é uma solução heterogênea, quando nele dissolvemos nosso ego, deixamos tudo saturado, pedaços pra todo lado. A solubilidade do ego é contestável, depende muito mais do solvente do que do soluto. Em conhaque, ela aumenta.

Perdi a mão. Não sei mais escrever. Provavelmente nunca tenha sabido. Tudo que anda por aqui é fluxo de pensamento, de uma forma nada meticulosa ou sistemática. Continuo não sabendo onde estou, e está tudo passando ainda mais rápido. Roubaram o calendário que estava aqui, e assim perdi os meus dias. E os dias que já passaram são meras folhinhas arrancadas.

Estamos abalados pela imprescindível tristeza da vida. Não há como evitar e não há como escapar. É bom lembrar que a vida é um fardo excessivamente pesado, não é nunca leve como uma pluma. É pesado exatamente porque arrancamos as folhinhas, mas não reciclamos nossos dias, jogamos tudo fora.

Assim dissolvemos o ego. Nunca sabendo até que ponto isso é necessário. Mas sabemos que assim chegamos mais perto de nós mesmos, do que talvez realmente sejamos. Continuo querendo esperar mais dos domingos, mais do que apenas tardes de sol, mais do que apenas o dia do senhor. Mais do que dissolução do ego.

domingo, 1 de março de 2015

Vibração

Todo corpo emite ondas. Toda existência física, senciente ou não, demarca sua presença no universo através da emanação de ondas vibracionais para todos os lados. Ondas variam em comprimento, velocidade, magnitude, variam na direção de suas cristas, e variam também em sua frequência. É uma equação complexa a variabilidade de um corpo físico. Todo corpo vibra e todo corpo emite ondas. Somos criaturas vibracionais. E também o somos em direções diferentes.

Quando dois corpos que vibram na mesma frequência se encontram, mas as direções são opostas, nada dá certo uma vez mais. E dividir a vida é mais fácil do que dividir o átomo, ou vice-versa. Mas buscamos, ou precisamos, aumentar a entropia, nunca diminuir. Por isso história nenhuma começa ou termina, nunca.

Houve uma época boa, vivida e revivida em devaneios, de forma vívida. Lembrada, relembrada. Mas qual época não é boa? Tenho visto a vida passar diante de meus olhos. Seria hora de parar? Dividir o átomo, dividir a vida. Vibrar em direções diferentes. Continuar com essas histórias cíclicas, em seus momentos em que aqui devem passar. Quem sabe em qual frequência está?

Começamos tudo de novo. Dividimos o átomo nessas histórias cíclicas. Alguém já escreveu de trás para frente? De costas, andando para trás. O tempo não volta, a entropia não diminui. Todo corpo vibra e emite ondas, e todas as épocas são boas, tudo depende da frequência na qual você está vibrando. Dividir a vida ou dividir o átomo? Continuar, devaneios, felizmente o mundo gira. Nada começa e nada termina. Nunca.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

You Say

You say you wanna seize the world
Look at this craven heart
Lurking on the ashes of ancient fires
I wish I saw your smile before
You say you wanna ride the wind
Break through all the frontiers
You say you wanna go
Look at this smirking face
Laughing at its own sorrow
For sorrow is joy and joy is forbade
You say you wanna put guns upon faces
And share this joy
Joyrrow my joy lies in sorrow
Look at this long lost soul
It won't last long no more
Seize the day ride the wind
Don't look back release yourself
Leave this prick to its own self
Go straight and do as you want

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Obituário

A melhor oportunidade que um sujeito pode ter de reunir ao mesmo tempo todas as pessoas importantes de sua vida, ele só terá em seu próprio velório. Mesmo outros eventos demarcadores de datas e passagens que são tão importantes quanto, como batismos, formaturas, casamentos e despedidas, não reunirão a mesma quantidade de pessoas representativas em nossa existência. O máximo só será atingido no dia de nosso velório.

Bebemos a vida em tragos largos, e toda vida é gloriosa por essência. Um bebê chora. Mas não lamenta a morte, ele nem mesmo entende. Ainda vai levar alguns anos para que o conceito de saudade ganhe em sua mente a companhia da inevitabilidade da nunca satisfação dessas saudades. Quem morre, morre uma vez só. Quem vive, vive sempre. É um bebê que chora, é o início de uma vida presente no momento do fim de outra. Os dois opostos mais perfeitos.

Todo mundo tem uma história. Todo mundo tem aquelas pessoas representativas em sua existência, que foi agregando ao longo dos batismos, formaturas, casamentos e despedidas da vida vivida. Queremos saber quem você foi, e o que você fez. Quero saber o que têm a dizer toda essa enorme quantidade de pessoas que frequenta o seu velório. O seu, o meu, o nosso velório. O velório de todo mundo que há ainda de morrer.

Talvez por isso mesmo, e visto que toda vida é gloriosa por essência, buscamos celebrar a vida vivida, em lugar de apenas lamentar a morte sofrida. Somos vidas celebrando vidas. Até que seja o nosso próprio velório, as nossas próprias pessoas, e o nosso próprio bebê chorando. Ainda que, inocente ele também das vidas e da morte que tem a sua frente, ele nem chore, e esteja também celebrando. E então, quem foi você?

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Reparar


Reparar é parar uma segunda vez, é consertar, e é também notar. Notar não é avaliar, atribuir nota; é apenas reparar, consertar a visão, prestar atenção, e perceber o que não se vê. Ninguém repara no que não se repara. Nos consertamos para ser reparados, notados e atribuídos valores. Paro e reparo, e rerreparo. Está tudo parado, e não consigo não reparar nesses consertos exagerados. Sou uma pessoa irreparável. Em todos os seus significados.

Nos conformamos com a vida. Aos poucos vamos aceitando as suas arbitrariedades. A realidade é uma abstração. A vida escapa às mãos, desce como areia fina. Machuca, dói quando ela voa e se distancia. Abstração arbitrária. Todas essas aliterações cansam, mas não deixam nunca de ser necessárias. Paro e reparo, e há uma linha extremamente tênue entre o sim e o não, entre o dia e a noite, entre ver e reparar.

E a aura da manhã carrega um peso a mais do que o resto do dia. Como uma necessidade de ser tudo o que ela puder, de viver intensamente o curto período que existe antes que o Sol e o mundo desistam do acordo selado entre o horizonte e os fugidios raios da aurora. A aura da aurora é a linha tênue entre o sim e o não. Não podemos deixar de reparar a aurora, de aproveitar esse mundo vibrante de abstrações e arbitrariedades.

J'aurais pu vous pris au ciel
Mais vous choisissez l'enfer

É o que fazemos sempre.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Toda Paixão Só Tem Gosto Se Sangrar

Demoro a reparar na imensa estrela branca que orna o teto desse ambiente, simulando talvez a vista de um céu que, mesmo que a proteção contra as intempéries não existisse, estaria obscurecido pelo excesso de luz urbana (existe coisa mais contraditória que uma luz que obscureça?). Por outro lado, talvez seja uma simples analogia sintomática aos lascivos giros, e ao belo translacionar dos pés que bailam aqui nesse chão.

Giram, giram, giram, bailam! Rodam as saias e os vestidos. Cores em profusão. Danças belas. Cada casal é uma estrela única, um corpo único vibrando e emitindo um intenso brilho que não se vê em luz. Integrantes de uma efêmera galáxia de corpos em translação de órbitas peculiares. Cada estrela morrendo e nascendo novamente ao fim de cada dança, formando uma nova e exclusiva galáxia de corpos celestes girando a cada música.

A Rosa Púrpura tenta me tirar para dançar, quer me fazer estrela. No entanto, sou um observador de experiências, um astrônomo distante, de galáxias que nunca explodem, nem nascem novamente. Um particular observador de primeiras vezes. A translação está em outro lugar. Aqui, cada saia rodada, cada giro, cada passo na penumbra quente, é uma estrela diferente, de tamanho, cor e luminescência únicos.

Enquanto pisam os pés, fazendo desse chão nosso céu, no denso ar paira o som da criação. E dizem, de maneira arrebatadora, que toda paixão só tem gosto se sangrar. Digo, de maneira corroboradora, que todo bailar só tem gosto se cansar. Mesmo que as estrelas nunca se cansem de girar. Assim, a dança uma hora para, se acalmam as saias rodadas, arrefecem-se as órbitas das estrelas. Mas logo, sob a tutela dessa imensa estrela branca no teto, se formarão outras galáxias. Outros bailares.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Perdidos

Escrever cartas de amor errando propositalmente o destinatário é uma ignomínia imperdoável. Uma falta desconcertante de tato e de devido respeito ao sentimento em si outorgado a quem quer que seja. Que todas as cartas de amor encontrem (fatalmente?) os seus destinatários, mas que sejam os destinatários corretos, os amantes de direito.

Eu sou uma tempestade no deserto. Sou aquele vento agitado trazendo aquelas nuvens carregadas, mas que nunca chovem. Nuvens negras em paisagem de céu apocalíptico. Areia em polvorosa. Se cada grão esculpido milimetricamente ao longo dos séculos por erosões contínuas fosse uma criatura viva, teríamos a mais linda revoada de todos os tempos.

Eu sou também o deserto regurgitando essa areia recebida há milênios, como uma ampulheta universal, regurgitando a mais linda das revoadas em direção aos céus. Se fôssemos criaturas dos céus, voando no abismo das nuvens, invejaríamos a estabilidade dos chãos. Como se dá o contrário, invejamos a liberdade das asas.

Amores perdidos podem nunca ser reencontrados. Nunca achados, nem no fundo das gavetas, sob documentos esquecidos, talões de cheque desutilizados, relicários abandonados, memorabília de coisas que mesmo nossa memória decidiu não arquivar. Nem lá no fundo do armário, do guarda-roupas, do guarda-armas, naquela blusa que já não serve mais há uma década, mas ficou ali, nunca aqueceu corações em campanhas invernais.

Nem lá no fundo do deserto, o amor perdido pode ser reencontrado. Odeio estar em corredores cujas paredes não podem ser alcançadas simultaneamente pelos meus braços estendidos. Quero ter tudo às minhas mãos, quero tocar o mundo, quero curar essa inveja das asas, e das estabilidades dos chãos também. Pois que depois de voar, de nunca reencontrar o que foi perdido, quero querer voltar. Voltar e perceber que no fundo daquele gaveta, no relicário abandonado, oras... eu não olhei direito. Estava ali.