segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Toda Paixão Só Tem Gosto Se Sangrar

Demoro a reparar na imensa estrela branca que orna o teto desse ambiente, simulando talvez a vista de um céu que, mesmo que a proteção contra as intempéries não existisse, estaria obscurecido pelo excesso de luz urbana (existe coisa mais contraditória que uma luz que obscureça?). Por outro lado, talvez seja uma simples analogia sintomática aos lascivos giros, e ao belo translacionar dos pés que bailam aqui nesse chão.

Giram, giram, giram, bailam! Rodam as saias e os vestidos. Cores em profusão. Danças belas. Cada casal é uma estrela única, um corpo único vibrando e emitindo um intenso brilho que não se vê em luz. Integrantes de uma efêmera galáxia de corpos em translação de órbitas peculiares. Cada estrela morrendo e nascendo novamente ao fim de cada dança, formando uma nova e exclusiva galáxia de corpos celestes girando a cada música.

A Rosa Púrpura tenta me tirar para dançar, quer me fazer estrela. No entanto, sou um observador de experiências, um astrônomo distante, de galáxias que nunca explodem, nem nascem novamente. Um particular observador de primeiras vezes. A translação está em outro lugar. Aqui, cada saia rodada, cada giro, cada passo na penumbra quente, é uma estrela diferente, de tamanho, cor e luminescência únicos.

Enquanto pisam os pés, fazendo desse chão nosso céu, no denso ar paira o som da criação. E dizem, de maneira arrebatadora, que toda paixão só tem gosto se sangrar. Digo, de maneira corroboradora, que todo bailar só tem gosto se cansar. Mesmo que as estrelas nunca se cansem de girar. Assim, a dança uma hora para, se acalmam as saias rodadas, arrefecem-se as órbitas das estrelas. Mas logo, sob a tutela dessa imensa estrela branca no teto, se formarão outras galáxias. Outros bailares.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Perdidos

Escrever cartas de amor errando propositalmente o destinatário é uma ignomínia imperdoável. Uma falta desconcertante de tato e de devido respeito ao sentimento em si outorgado a quem quer que seja. Que todas as cartas de amor encontrem (fatalmente?) os seus destinatários, mas que sejam os destinatários corretos, os amantes de direito.

Eu sou uma tempestade no deserto. Sou aquele vento agitado trazendo aquelas nuvens carregadas, mas que nunca chovem. Nuvens negras em paisagem de céu apocalíptico. Areia em polvorosa. Se cada grão esculpido milimetricamente ao longo dos séculos por erosões contínuas fosse uma criatura viva, teríamos a mais linda revoada de todos os tempos.

Eu sou também o deserto regurgitando essa areia recebida há milênios, como uma ampulheta universal, regurgitando a mais linda das revoadas em direção aos céus. Se fôssemos criaturas dos céus, voando no abismo das nuvens, invejaríamos a estabilidade dos chãos. Como se dá o contrário, invejamos a liberdade das asas.

Amores perdidos podem nunca ser reencontrados. Nunca achados, nem no fundo das gavetas, sob documentos esquecidos, talões de cheque desutilizados, relicários abandonados, memorabília de coisas que mesmo nossa memória decidiu não arquivar. Nem lá no fundo do armário, do guarda-roupas, do guarda-armas, naquela blusa que já não serve mais há uma década, mas ficou ali, nunca aqueceu corações em campanhas invernais.

Nem lá no fundo do deserto, o amor perdido pode ser reencontrado. Odeio estar em corredores cujas paredes não podem ser alcançadas simultaneamente pelos meus braços estendidos. Quero ter tudo às minhas mãos, quero tocar o mundo, quero curar essa inveja das asas, e das estabilidades dos chãos também. Pois que depois de voar, de nunca reencontrar o que foi perdido, quero querer voltar. Voltar e perceber que no fundo daquele gaveta, no relicário abandonado, oras... eu não olhei direito. Estava ali.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Mercaos

As coisas andam bem demais, poderia dizer o otimista. Para o realista basta saber o que sempre se soube: que as coisas andam como sempre andaram, nem melhor nem pior. Seguindo todos os rumos de sempre, de eras geológicas ancestrais. De tempos e vidas que só conhecemos através das carcaças fossilizadas. As coisas andam, e vez por outra elas vão bem, ou mal.

Quando as coisas vão bem, vez por outra também, desejamos inconscientemente, subtilmente, que elas percam um pouco desse brilho resplandecente de coisas indo bem. Sim, desejamos a dor, a amargura, a ansiedade e a tristeza, a soturnidade e a depressão. Tantos substantivos femininos para designar sentimentos, não nos enganemos, extremamente universais. Mas desejamos isso, repito:, subtilmente, com esse B intruso do léxico de nosso idioma como utilizado além-mar. Desejamos sem perceber.

E então, em casos como esse, precisamos recorrer a um novo tipo de estabelecimento comercial: o Mercaos. O Mercaos é o lugar no qual é possível adquirir alguns daqueles sentimentos substantivos femininos e tão substanciais. Chegamos ao atendente, e solicitamos um quilo de caos, uma lata de desastre, uma unidade de infortúnio, um pacote de catástrofe, um fardo de transtorno, um litro de calamidade. E saímos do Mercaos com as sacolas estufadas e a consciência tranquila.

Todas as pessoas que frequentam o Mercaos muitas vezes acabam se tornando clientes fiéis. Voltam sempre. Querem mais. Precisam. Buscam essa forma de desestabilizarem a si próprias, mesmo quando o otimista diria que tudo anda bem demais. Oras, aqui temos um advérbio de intensidade talvez mal colocado. Se as coisas apenas andassem bem, não precisaríamos visitar o Mercaos. Mas aqui erramos de novo, apenas é pouco, bem é o suficiente. É preciso fazer com que as coisas andem enfim, nem demais nem apenas, nem otimista, nem como sempre se soube. E parar de visitar o Mercaos.