sexta-feira, 29 de maio de 2015

Mistérios


“Repassem a informação: a realidade está se dissolvendo!”. Isso gritava o maluco na rua, chamando a atenção de alguns dos transeuntes que passavam, mas logo voltavam às suas atividades rotineiras de não prestar muita atenção em qualquer doido dessa cidade. Sentei no banco da praça e fiquei esperando, queria ver até onde o maluco iria, em seus devaneios.

Você é um livro que está escrito em outro idioma. Houve uma época em que eu queria ser poliglota, fazer trocadilhos estúpidos em todas as línguas. Saber traduzir saudades. Hoje, eu abro as suas páginas e não entendo nada. Você é uma coleção de hieróglifos. É um alfabeto cirílico de cabeça para baixo.

Mas tenho mesmo sentido a minha cabeça meio flutuante, como uma folha à deriva no rio, procurando o oceano mais próximo, sendo que cada pequeno córrego é uma artéria irrigadora. Os glóbulos brancos são as folhas caídas.

Tenho ficado fraco em metáforas. Acho que meus devaneios são culpa da anemia. Corpo fraco, metáfora fraca. A folha continua flutuando, viaja sobre águas que nunca voltarão. O que mantém um rio em seu curso é a potência das águas que vêm atrás.

Tento decifrar as tuas páginas, mas não compreendo. O estranho é que sei que ali está escrita uma história maravilhosa. Tenho certeza absoluta da qualidade de cada palavra empregada, da habilidade com que cada sentença foi constituída.

O maluco na rua continua gritando. Vai ver a realidade dele está mesmo se dissolvendo. Ainda não chegou a lugar algum.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Taxidermia


O nosso amor morreu naturalmente
Ele nunca sofreu as indizíveis violências
Da extremada paixão
Ele nunca respirou ofegante
Após o baque do choro vertido
Ele nunca se escondeu de si mesmo
Em buracos sombrios infrangíveis
Nosso amor foi vivaz
Foi luzeiro saliente
Externado e nunca extenuado
Morreu tranquilamente
Morreu naturalmente
Tal qual antes nasceu
O nosso amor não será esquecido
Será embalsamado
Lhe tirarei as entranhas inertes
Preencherei de palha o interior
Taxidermizarei nosso amor
Vou expô-lo na sala de estar
Deixar com que ali permaneça
Baluarte do amor de outrora
E que ainda ali existe
Lembrança bem vinda
De um amor que morreu naturalmente
Que foi taxidermizado
E que nunca será esquecido

terça-feira, 12 de maio de 2015

Sobre a Certeza

Há alguns dias a Lua me pediu um poema. Encomendou a poesia para usar em alguma serenata para seu amante em céus que não ouso caminhar. Me deu os temas, algumas palavras chaves, uma possibilidade de rima e métrica em que ela já estava pensando, e disse “agora te vira”.

Comecei a escrever, e o relógio me parou. Ou me parou o relógio. Meu relógio parou e eu parei, se assim ficar mais bem compreendido. As horas tornaram-se um vulto espesso e gigantesco, praticamente infinito, como uma fabulosa neblina que cobria absolutamente tudo. É certo que a neblina acontece quando o mundo está triste, mas esse não era um poema de tristeza, era apenas um truque do tempo.

Assim eu vi o tempo tomando forma, e ele só fazia isso com o objetivo de parar, de não mais correr. Em meio àquela névoa, percebi que o tempo parou, na verdade, por um objetivo maior: para que eu terminasse o poema que a Lua pediu. Mas o relógio só ficava parado na companhia da Lua, nos outros momentos o tempo se lançava vertiginosamente rumo ao futuro.

O ar me ia faltando, as pernas me iam tremendo. Sentíamos falta mutuamente: eu e o ar. O ar não serve para nada se não houver quem o respire, ou ao menos quem use asas para nele pairar. Haveria um mundo se não houvesse ninguém para presenciar a existência do mundo? O mesmo vale para as horas.

A Lua começou a me apressar, queria logo o poema pronto. Oras, todos temos compromissos, não compreende? Oras, temos compromissos com as horas. Nova, crescente, cheia, e minguante: fases também de nossas vidas. E como outrora dito: tudo minguará.

Mas então percebi que se eu nunca terminar o poema, talvez o relógio possa ficar mais vezes parado em companhia da Lua. Mais tempos para que o tempo seja eterno e me falte o ar. E mais oportunidades para poemizar.