terça-feira, 6 de junho de 2017

O Velho Chico que me Perdoe...

... mas eu prefiro o meu Paranazão, sobre o qual já falei também. São Francisco, patrono dos animais e do meio ambiente, que, de acordo com palavras de Dante, foi a "luz que brilhou sobre o mundo". Rio com nome de santo milagroso. Não ser meu preferido não diminui o brilho do rio mais querido do país, brilho do sol do sertão fustigante refletido em suas águas poderosas.

É que o meu Paranazão tem comigo identificação quase genética. Nasci e cresci às suas margens. Moro à beira de seu principal afluente. Já olhei até para a sua foz. Olhando-o de cima, me despeço do Velho Chico, deixando-o para seus devotos, mas com um sentimento de que de bom grado eu rezaria para ele também.

E se nuvens são montanhas no céu, rios em pleno sertão muitas vezes são a chuva do chão, a única água que se tem. Por outro lado, em outras paragens, a chuva quando vem deságua em aguaceiros desregrados, leva tudo em lama, e lava pouca ou nenhuma alma. Chuva no sertão é cais de porto inalcançável, é luz de farol na neblina impenetrável.

A luz chamuscante do farol do pitador, desponta o cigarro como fator sociabilizante, com sua luz também atrativa. Na simples conversa, papo de rodoviária, motivada pelo fumo, o sorriso no rosto interiorano carregado de rugas, marcado pelo sol e pela difícil lida de anos puxando todo quanto é tipo de fardo. Há beleza nas pequenas coisas. Se tantas vezes te falaram isso, por que ainda não reparastes?

A mão que faz pequenas coisas, objetos mínimos de uma fluidez artística impressionante, é a mesma mão que levanta casinhas de taipa moldadas com esse mesmo barro, ao lado das quais constroem-se templos. Assim se dá que também a religiosidade de um povo é diretamente proporcional à sua pobreza e falta de infraestrutura.

Há templos e templos. Em um hostel, você nunca conhece alguém de verdade, conhece apenas a versão viajante descolado de cada pessoa. Todo mundo, mais ainda do que no restante dos dias e do mundo, é uma máscara. Viajar é um privilégio, não pertinente à vida sofrida do sertanejo ou do agrestino, que quando viaja é por obrigação. E aí recebe o nome de retirante: viajante nunca.

Não devo sequer me atentar aos aspectos da lombra, da buchada de bode, da primeira igreja do Brasil, ou da fitinha do Senhor do Bonfim. Há coisas que não podem ser lidas ou contadas, precisam ser vistas e ouvidas. Pessoalmente, cada um por sua conta. Em histórias individuais ou coletivas. Após 14 horas rodadas dentro de um ônibus que para em cada cidadezinha esquecida pelo mesmo Deus que deu ao mundo o Francisco que virou santo e depois virou o rio que margeia essas mesmas cidades.

É preciso ir, e trazer de volta o que puder. Mas só trazer coisas que não possam ser removidas, coisas que quando compartilhadas permanecem com ambos os quinhoeiros. Talvez seja até preciso pedir perdão, mesmo que o ofendido nem se sinta como tal, e o perdão se torne vago e desnecessário, ainda que sincero. É preciso entender que de sotaques diferentes se constrói um mundo só. E que cada canto desse mundo tem um pouquinho do Nordeste brasileiro.