terça-feira, 30 de setembro de 2014

Capítulo 5 - Sem Nome, Sem Mais Nada

Ao sujeito que é uma vez facultado ver a glória, o medíocre nunca mais lhe será suficiente. É impossível ter um dia o esplendor em mãos, e contentar-se no dia seguinte com o regular, o reles, o ordinário, a semi-glória. O sujeito que é rei uma vez nunca deve contentar-se em abandonar trono, cetro e coroa, para tornar-se o bobo da corte.

Tudo desvanecerá, e isso já foi dito. Mas é assim a ordem natural das coisas, todo castelo foi feito para desmoronar, e as mais lindas cores sempre desbotam. As coisas deixam de ser e de haver a todo o tempo. A glória um dia minguará. Tronos, cetros e coroas passarão, e nada vivo há de restar. O brilho cintilante de cada estrela, um dia será trevas na imensidão de um espaço frio e profundo.

Talvez nossas pinturas tenham desbotado pela ação do tempo implacável. Talvez tenhamos virado supernova, em uma explosão desalentadora. Talvez tenhamos morrido nesse mundo nublado, onde nosso caule não tem para onde girar. Talvez o arco-íris tenha desaparecido no ar como se nunca tivesse existido. Talvez tenhamos sido números normais, pares quaisquer. Talvez tenhamos sido linhas perpendiculares afinal, e nunca nos encontremos no infinito.

O que fica da glória é a própria existência da mesma. Sempre digo que não devemos lamentar as mortes sofridas, mas sim comemorar as vidas vividas. Portanto, só me resta agradecer à glória por ela ter existido, pois que a sua existência foi auto-suficiente. Agradecemos às vidas por elas terem sido vividas. A glória existiu, e isso basta.

E agora você parece para mim um sonho bom, porém distante. Um sonho sonhado em uma daquelas noites que a gente acaba acordando meio desvairado, sem entender muito bem o que acabou de acontecer. Aí senta na beira da cama, e passa alguns minutos tentando colocar as ideias no lugar, mas isso não é algo possível... Então, a ponto de levantar e seguir com o dia enfadonho e sem graça que com certeza virá, vem um sentimento bom, um tipo de paz interior mediante uma lembrança que não se sabe nem de onde vem, e aquela sensação reconfortante de que mesmo o sonho tendo acabado, ele foi bom... Ele foi muito bom.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Desamar

Um dia desses, a Rosa Púrpura sentenciou que uma das maiores loucuras que um ser humano pode cometer é escolher deliberadamente amar, que criatura nenhuma deveria fazer isso em sã consciência. O amor só tem, segundo esse ponto de vista, efeitos negativos a longo prazo, e o bem que ele faz nunca seria real. É um pensamento que questiona pontos como a inabilidade para não-relacionamentos, e o triste medo das solidões que as pessoas carregam consigo exatamente quando estão sozinhas. Pensamento que sai de ventrículos e átrios calejados, ignorando a autonomia da sensatez lógica.

Ela disse também, em outros tempos, que minha sina se configura claramente em uma vida solitária, desprovida de alcateia, feita de caminhares em florestas cobertas de frias neblinas pela manhã, onde minhas pegadas ficariam marcadas na neve apenas pelo tempo necessário para não serem seguidas. Em outros tempos já disse eu que, oras!, aceito esse destino... O que temos a fazer além de aceitá-lo? Lutar contra ele é de uma nobreza admirável, e isso fazemos. Porém, há lutas que não foram feitas para a vitória.

O grande segredo para lutar quando a derrota é inevitável, é não lamentá-la quando ela fatalmente vem. Sentar-se inconsolável sobre o campo outrora florido, coberto agora de sangue da batalha, não vai mudar a sina pré-determinada e antecipadamente conhecida. Perdemos muito mais do que ganhamos, o mundo é muito mais feito de não do que de sim.

Há corações espalhados por aí que carregam consigo fardos pouco pesados, outros não levam nenhum. Contudo, todo músculo cardíaco possui seu próprio limite de peso, tal qual os elevadores que não levam mais do que oito pessoas, ou 560 quilos. É claro que, em último caso, eles levam sim além dessa quantidade, o problema é que isso não é seguro, e vai causando um mau funcionamento com o excesso constante. Acredito que os corações que carregam os maiores fardos são aqueles elevadores de serviço, capazes também de carregar consigo até 16 pessoas. Toda quantidade é abstrata, que claro fique, apenas nossos corações não são corações de mãe.

Em todos os casos, há batalhas e batalhas, lutas e lutas, guerras e guerras. E a maioria delas sequer foi feita para ser travada. No entanto, há uma coisa, acima de todas as outras, que a criatura solitária que uiva para a Lua nunca entenderá em sua perene existência: escolher desamar. Afinal, como é possível que duas existências que entram em confluência trazendo benesses mútuas podem decidir deliberadamente, em um momento qualquer, por se afastarem? Se o bem que ele faz é real, por que escolher não mantê-lo?

Mas o quê?!, isso é que está certo. Sim, está. O bem por si só não basta. Não nos contentamos com o suficiente, queremos a floresta toda quando temos uma árvore. E até que está realmente certo, mesmo sendo absurdo. Escolher deliberadamente amar pode ser uma loucura, praticada por criaturas insanas; no entanto, escolher deliberadamente desamar é uma loucura muito maior. Uma loucura que criatura nenhuma em sã consciência deveria cometer.

sábado, 6 de setembro de 2014

Sobre Fozes e Nascentes

Sou um rio caudaloso. Nasci há muito tempo, quando as montanhas eram ainda jovens. Sou uma criatura muito vívida e intensa, e carrego comigo milhões de outras vidas. Sou um rio que cruza vários estados da nação, e apenas um da matéria. Venho de vales e montanhas, de planícies e florestas, banho fazendas e cidades. Cruzo também mais de um país.

Estivemos em milhões de lugares, em todos os lugares do mundo, e lá fomos sempre bem recebidos. Nossas águas banharam três fronteiras, e se precipitaram em quedas e em iluminações maravilhosas. Atravessaram pontes, e, sob a forma de gotículas em suspensão, molharam as faces deslumbradas de incontáveis criaturas também em suspensão. Precipitaram-se também sob a forma de lágrimas, como uma pedra que canta uma triste canção, e prenuncia um choro em cascata que é uma das sete maravilhas da natureza.

Nacimos de muchas madres, viemos de muitos afluentes, de tudo aquilo que se esforçou para ser nós. E, sobre a ponte, foi posta à prova nuestra amistad. Passamos em testes todos. Estivemos sim em três lugares ao mesmo tempo, e todos os outros lugares por aqui estiveram. Estivemos em Libra, em Órion, na Pedra que Canta; estivemos com Naipi e Tarobá nos primórdios de nossas águas com seu amor nunca consumado. Todos os lugares são o mesmo, todas as cidades são iguais. E esse lugar é deveras maluco!

Gosto das pessoas que dançam sob e sobre as minhas águas. Gosto daquelas pessoas que topam qualquer passo, por mais insano que seja. Pois que dança nenhuma é impossível. Aprendi que o impossível nada mais é do que o que temos medo inconsciente de alcançar. Dançamos pelos anos, atravessamos tantas águas, e é impressionante imaginar até onde esses passos já nos levaram, a quantas margens de um mesmo rio. Caímos da vida em cataratas. Retornamos em nascentes maravilhosas.

Nascemos e morremos, para dizer a verdade, o tempo todo. Nascemos assim, em fontes cristalinas escondidas em selvas impenetráveis. Por vezes, nascemos também de confluências. Mas morremos em fozes maravilhosas, em pedras que cantam, em cachoeiras deslumbrantes. Outras vezes imigramos para países hermanos, e um dia iremos desembocar em mares argênteos.

Perdemos. E às vezes ganhamos. Sou um rio caudaloso. Não sou afluente, pois que sou feito de afluentes. Não sou riacho, pois que meus afluentes são feitos de riachos. Não sou ribeirão, pois que os riachos de meus afluentes são feitos de ribeirões. Sou um rio caudaloso, o segundo maior rio do país, e esse é o meu maior orgulho.