terça-feira, 20 de março de 2018

Histórias a Contar

Escrever sobre escrever é o que determina sem volta quem escreve. É uma questão simples: você passa a ser alguém que escreve quando escreve sobre aquilo que escreve. A linguagem não passou a existir quando alguém pela primeira vez a utilizou, mas sim quando alguém pela primeira vez a utilizou para explicar a linguagem.

É sabido que a forma é a expressão do conteúdo, e que ambos são inseparáveis. Mas não são a mesma coisa. Uma nos ajuda a compreender a outra. É assim que vemos o mundo e o interpretamos.

Faz tempo que não escrevo em abundância, ultimamente só em pequenos goles. Já determinei tantas vezes que esse era um vício indissociável da minha própria natureza. Uma fraqueza genética que me causava certa predisposição para cair nessa tentação e não conseguir mais sair dela. Frequentemente me dopava de letras e me deixava cair inerte e derrotado pelas páginas. Hoje, sinto falta.

Creio que conforme envelhecemos, acumulamos também coisas a perder. Acumulamos pessoas a ver, coisas a fazer e lugares a voltar. Acumulamos também objetos, mas desses ninguém precisa. O importante é não deixar essas coleções em álbuns empoeirados, ou em tristes redomas sem ventilação. Temos mais a perder, mais coisas estimadas.

Juntamos ainda cada vez mais coisas a escrever, histórias a contar. Linguagens a expressar em forma e conteúdo. Expressões do inseparável. Criamos usos para a linguagem e os aplicamos em novas formas e novos conteúdos. É preciso escrever e escrever sobre escrever. É necessário voltar.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A Invenção da Emoção

Cantar que é longa a estrada da vida deixou de ser belo e encantador para se tornar risível. Foi em outros tempos poético, hoje é considerado cafona. Não que a estrada da vida tenha se encurtado. Pelo contrário, ela está sempre crescendo, sendo pavimentados novos caminhos nessa rodovia do sempre. A expectativa de vida aumenta até para aqueles que veem mais beleza na imensidão desses vastos campos à esquerda e à direita, do que na longa e estafante viagem pela frente.

Somos o mal do século da geração perdida desta geração.

Creio que em algum ponto da rota, me desviei do meu caminho. Peguei o atalho errado para lugar nenhum. Revejo agora filmes que nunca deveria ter assistido. Reouço músicas que sequer deveriam ter sido compostas. Viajo por estradas nas quais os outdoors de propaganda se repetem infinitamente, passando a mesma mensagem para os mesmos passantes.

Somos a metástase lancinante deste imenso Jack que atende também por Gaia.

Sabemos que a humanidade inventou a emoção logo após o advento da revolução industrial. E, mesmo assim, ainda demorou muito para a aplicar. Provavelmente ela só se tornou palpável no século XX. Antes, era condenável sentir, era passível de punição. Negávamos nossa natureza de ser sensível, que se arrepia ao toque. Ainda vivemos sob o jugo da produção, mas somos um pouco mais livres para amar de tudo.

Somos a flamejante rocha espacial extinguindo estes dinossauros bípedes e pensantes do antropoceno.

Nosso caminho não está pré-determinado. Toda bifurcação é escolha nossa e de mais ninguém. Fazer a volta, ou colocar a marcha à ré, e retomar alguma estrada vicinal para acertar o caminho não faz mal a ninguém. Não é derrota. Mas precisamos compreender que o fim da estrada permanece o mesmo. Ainda que possamos encurtá-la...

Somos muito mais do que não somos.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Captain of my Soul

De tempos em tempos em nossas vidas, de maneira totalmente imperceptível, tudo desanda. É um momento no qual perdemos o controle de tudo. Eventualmente, recuperamos o controle, as rédeas, o captain of my soul de cada um. Mas durante um tempo variável, em sucessão de instabilidades, estamos perdidos.

O que acontece é que, de vez em quando, uma coisa se rompe dentro de nós. Como uma corda que se parte ao levantar uma carga pesada demais, causando um grave acidente, possivelmente aleijando um operário azarado demais por se encontrar exatamente no caminho da carga que a corda não conseguiu aguentar. Pode ser o mais maciço cabo de aço, pode ser um pequeno e frágil barbante trançado, todo suporte tem seu limite de carga.

Há pessoas que vão caminhando pela vida como bolas de sinuca em uma tacada forte e sem rumo. Rolam pelo pano verde batendo nas paredes de madeira almofadadas. Seguem caminhos pré-determinados por forças alheias a elas, sem ímpeto ou vontade suficiente para direcionar o próprio destino. Andam pelas ruas carregando suas vidas em uma sacola de mercado, sem nunca saber o que está acontecendo por aí.

Sempre achamos que podemos mudar o mundo. Mas esquecemos que somos o mundo de nosso mundo. Está aí outra mentira que lhes contaram: giramos sim em torno de nossos umbigos. Não se trata de egoísmo, se trata de auto-preservação. Você primeiro.

Mas aí tudo desanda. Sentimos vontade de não saber nada. De que a bola branca nos empurre logo para a caçapa mais próxima. A carga se espalha pelo chão e precisamos nos abaixar, parar tudo o que estamos fazendo, e juntar os destroços da queda. É temporário. Recuperamos o controle.

"Aguente firme, querida, é um mundo muito louco".

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Aquiescer

Essa plataforma perdeu o prazo de validade. Se assim é a ciclicidade da vida, seria demais querer que a da tecnologia em si não fosse. Já não frequento tanto estas paragens da internet quanto antigamente, venho aqui em ocasiões especiais.

Meu coração aquiesceu aos planos da vida e da morte. Acabamos nos conformando aos poucos, parece mais difícil contestar, ou então parece mais justo o injusto. Então tentamos sempre nos convencer de que podemos fazer de cada dia uma ocasião especial. Não é fácil sentar e esperar a vida passar.

Enquanto a vida passa, passamos pela vida acumulando pessoas,... e coisas. Coisas a fazer e pessoas a ver. Situações a resolver. Projetos a iniciar e, uma vez iniciados, a concluir. Ou desistir. Das coisas e das pessoas também. Das situações e das resoluções. E vamos passando, tanto quanto a vida, passam as pessoas e as coisas também.

Envelhecemos. Todos precisamos de loucura para sentir. E sentir é um ato de coragem. Já não passamos mais tanto tempo vivendo, de vez em quando morremos um pouco, frequentamos outras paragens. Flutuamos entre a vida e a morte.

Tenho andado ansioso. Ansioso por todas as partes da vida que ainda não vivi. Por todas as pessoas ainda não acumuladas, pelas coisas. Por tudo que ainda posso t(s)er e não sei se vai dar tempo. Já decidi há muito tempo que quero ser tudo. Acumular pessoas é a forma de ser todos no outro. Tenho listas com os nomes de quem amo e de quem já amei. E é como sempre falo: todo amor é eterno.

Dizem que ansiedade é excesso de futuro. Sempre sofri de excesso de passado, agora tenho muito dos dois. É isso. Na nossa percepção de tempo, ele passa, e essa verdade é imutável. Tudo o que podemos fazer é viver o tempo que nos foi dado viver. E quando os planos da vida estiverem minimamente aceitáveis: aquiescer, mas sem necessariamente passar.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O Barulho do Tempo

Há uma evidente contradição na própria essência existencial do universo: em si, todas as coisas são finitas. Contudo, a matéria da qual todas as coisas são constituídas é eterna e se recicla infinitamente. Tudo acaba, e, no entanto, tudo é também eterno.

Constantemente, tenho ouvido o barulho do tempo passando. É um som desconfortável, quase irritante. Um ruído partindo pro baixo, quase grave. Inconstante, não segue qualquer padrão identificável. É um barulho pois não é um som agradável, não é música o que faz o tempo.

A óbvia conclusão de se ouvir o barulho do tempo passando é entender que o tempo possui corpo físico. Oras, pois que só gera ruído aquilo que é capaz de vibrar. Logo, é também uma dimensão mensurável, e o melhor: palpável.

Dizem por aí que somos feitos do que as estrelas são feitas, que somos poeira estelar. Oras, somos feitos de algo menos, pois não somos capazes de compreender as estrelas. Mas todo mundo sabe que um dia voltaremos a ser elas. E que elas são vivas também, criaturas evoluídas, que talvez algum dia tenham sido mesmo nós. Creio que elas sejam capazes de compreender o tempo, de ouvir seu barulho como música.

Já gastei muita rua por aí. Cortei muito chão. Tenho fome de mundo. Já vi algumas coisas. Tenho fome de tudo. Eu quero ser vocês. Quero ser eterno e ainda assim acabar. Quero ver, e ouvir, o tempo passar; permeado pela sabedoria das coisas que são há muito tempo, que já percebem a beleza da sinfonia dos hojes. Quero segurar o tempo e apreciar a sua melodia, sendo infinitamente finito.