segunda-feira, 26 de maio de 2014

Limites do Saber e da Vida

Todo mundo acreditava estar certo o tempo todo, era a geração da certeza. Os antigos é que estiveram errados, eles faziam guerras, e guerra é errado. Oras, os caras faziam guerra desde que o mundo se estabeleceu, e aqueles primeiros átomos começaram a brigar entre eles, em explosões intensas de brilho e calor. E foi assim durante quase todo o tempo. As nações viviam em margens de paz, e as pessoas andavam pensando no progresso intelectual como nunca antes. O mundo era menos hostil.

Nossos avanços tecnológicos evoluem à medida que a própria vida evolui. Somos levados a supor, a maior parte do tempo, que a nossa mente e capacidade intelectual são infinitas, e podem atingir qualquer nível de conhecimento, mas ainda não sabemos onde está esse ápice. E ainda estamos deveras longe de atingi-lo, evoluindo tão lentamente quanto agora.

Acontece que qualquer sistema baseado em um crescimento linear e infinito é simplesmente insustentável. Nada que consome algum tipo de combustível para crescer pode ser infinito, a menos que esse combustível também o seja. O saber utiliza o próprio saber como combustível, alimentando-se de si mesmo sucessivamente, de modo autófago, porém não destrutivo. Mas assim ele se torna uma grandeza cíclica, evoluindo apenas até o limite no qual ele tenha saboreado o mesmo tanto de si mesmo, em progressão geométrica.

De certa forma, o conhecimento pode ser acumulado e passado de geração para geração da criatura humana. Contudo, uma parte desse saber sempre se perde nas imperdoáveis masmorras do tempo, com aquele sábio ancião que não transmitiu sua experiência; com aquele brilhante cientista incapacitado cedo demais; com aquele grupo de estudos que não chegou a resultado prático nenhum. Precisaríamos viver eternamente para que o acúmulo de saber pudesse ser aproveitado. E nada muda o fato de que precisamos morrer.

Individualmente, somos títeres de interesses maiores, dos interesses da espécie como um todo. Coletivamente, somos criaturas sem individualidade, como gotas d’água apenas completando o oceano. Somos meros acúmulos de moléculas, meros agregados de proteínas, originários daquela primeira proteína que, lá na sopa primordial, resolveu um dia sintetizar RNA. A vida é nada sem saber, e não podemos o ter por completo, podemos apenas acumular partes dele. Podemos ter uma perna de conhecimento, um braço de intelectualidade, um abdômen de sabedoria, um tórax de inteligência. Nunca teremos um corpo inteiro, nunca teremos moléculas suficientes.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Eu Sou Um Desastre Natural

Algumas pessoas têm em seu interior um lindo sol de primavera, brilhando por sobre as verdes pradarias onde alegres coelhos correm, com montanhas de cumes gélidos ao fundo, e tendo imponentes carvalhos e outras árvores frondosas como moldura. Então esse sol se põe em uma paleta de cores única e magnífica, deixando os rastros de seu brilho no céu azul durante horas. Outras pessoas apenas chovem.

Ventamos a 160 quilômetros por hora, destelhamos residências, derrubamos as árvores. Somos o vento contra o vento. Explodimos em lava, conservando a particularidade de um momento infinito em rochas ígneas. Somos o fogo contra o fogo. Somos a tempestade, a calmaria, a verdade e a utopia. Somos a terra furiosa, que chacoalha convulsivamente, derrubando tudo o que for fraco o suficiente para não suportá-la. Somos a terra contra a terra. Derretemos com o calor implacável, e nos derramamos em água nos oceanos, subindo com suas marés. Somos a água contra a água.

Somos a natureza contra a natureza. Somos cada microcosmo de caos. Cada pequena partícula se deteriorando e arrastando para baixo todas as partículas ao seu redor. Somos a entropia ao contrário, perdemos calor, nos agitamos e bagunçamos o sistema. Somos cada um dos pequenos e magníficos desastres que assolam a existência de todos os dias.

Enchemos de magma as verdes pradarias, trememos e rachamos as montanhas dos cumes gélidos, derrubamos os imponentes carvalhos com a força de nossos ventos, afogamos os alegres coelhos com o excesso de nossas águas. E sobra o sol. O sol continua se pondo através de um cenário de desastre. Com suas cores únicas, com suas formas magníficas. Com seu brilho se arrastando pelo céu azul durante horas. Então para de chover.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Saudades

Sou realmente um saudosista inveterado, daqueles que usam constantemente o presente para pensar no passado, e planeja o futuro em vista do mesmo. Daqueles que aprendem que a memória nos serve apenas para que evitemos levar novas pedradas. Para que aprendamos com o erro outrora praticado, e que passados nunca sejam futuros.

Sinto deveras saudades. Mas então penso que não, que não as sinto, que deixei de senti-las exatamente por senti-las tanto. Sendo tudo isso só saudades, onde está o presente? Acontece que preenchemos os tempos que não temos com os tempos que um dia tivemos. Apenas sentimos saudades porque temos ausência de presente. E nenhuma perspectiva de futuro, além daquele que nossa própria visão de passado projeta.

Torno-me mais complacente em relação às formas de atuação da vida, e um pouco menos atuante em relação à complacência do universo. Torno-me também menos vívido, e mais límpido, porém maculado. E a vida é infinita dentro dela mesma, de prêmios conquistados a derrotas pré-concebidas. As mesmas vitórias e derrotas de outrora.

Fatos extraordinários, quando repetidos costumeiramente, se tornam eles a rotina. Aprende-se a levar pedrada. Acostuma-se com o sofrimento, e assim o sofrimento deixa de sê-lo. A pessoa é para o que nasce, e isso aqui já foi dito, e há que com isso se acostumar. Só se frustra quem se dá motivos para tanto.

Por isso tudo, a complacência adquirida se torna tão importante, ela mantém firme a memória, a ausência de passados e de pedradas. Ela mantém também intacta a empolgação pelo prêmio adquirido. Prêmio já cravado na memória e no passado. Para que sejam todas saudades, para que preencham os buracos de nosso presente.

domingo, 4 de maio de 2014

Refração

Tudo pode ser invisível. Cegueira é apenas ausência de luz. Não quero enxergar! Não me deixem enxergar! A noite, no escuro, quando apenas a Lua brilha, um brilho reflexo, e as estrelas piscam vagamente na profundidade; o mundo nos implora por um pouco mais de tempo para resolver esses problemas que as coisas que orbitam e são orbitadas têm.

Então viajamos, rodamos a noite e à noite. Cortamos auto-estradas, e relembramos o tempo em que estivéramos perdidos. Tempos remotos, vagos como o brilho das estrelas, que nos atingem tantos milhões de anos depois de terem de fato brilhado. Podemos agora mesmo estar perdidos nos canaviais do tempo-espaço. E poeira se levanta, nos atinge internamente, se acomodando nas paredes de nossas fossas nasais, como se aquele fosse seu lugar de direito.

Cortamos auto-estradas de chão batido, de pedras e de pó, em busca de um objetivo, vago ele também. A poeira carrega o ar com um cheiro de bucolismo, de austeridade serena. É noite, é escuro, é poeira. Faróis seguem na direção oposta. E sabemos que nosso vago objetivo diminui ainda mais, cai dentro de si mesmo. Mas seguimos, com os faróis cortando a poeira, representantes de uma fonte luminosa, essa sim invisível.

Os faróis não param de vir. Cortam a poeira, difusam, divergem, refratam. Nos atingem através das nuvens de pó que pairam sobre a auto-estrada, nesse escuro entremeado de luzes. Iluminando a poeira, e nada mais. Como diria um autor, para epílogo de breve relato: O que tiver luz não me pertence.