quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Apneia

Acontecem coisas boas e acontecem coisas más. É simples e devemos nos acostumar. Devemos aproveitar o melhor de todas elas: viver bem as boas, de modo que as valorizemos; e aprender com as más, de modo que lhes tiremos um mínimo proveito.

*sound effect de disco arranhado*

Bobagem! Não precisamos falar sobre isso. É lugar comum, conhecimento genérico. Por todos apregoado, por poucos praticado. Aprender com os erros é uma das utopias da vida moderna; os erros é que aprendem conosco, e nos ensinam novas formas de errar. Nos basta saber que acontecem coisas boas e acontecem coisas más.

Vide esta angústia que não passa nunca, bate estaca cada vez mais evidente, retumbante, apregoante. Grita a plenos pulmões, e então fecha os mesmos, retirando toda a possibilidade de respirar. A vida, que não é anaeróbica, clama pela respiração perdida. Expira em apneia. Sem ritmo, rima ou métrica, se afoga em tudo, pois que o ar está aqui por todos nós. Se afogar com tanto ar é ironia cósmica, quase quântica, quânti quasica.

Viste esta angústia, por que com ela não aprendeste?; porque não precisamos, aprendemos novas formas de se afogar.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Há Um Ano - parte 2


Às criaturas da água pertence apenas o abismo de baixo, o mais pesado de todos. O abismo dos céus lhes foi negado. Mas tudo bem, não nos importamos. Em nossa sensitividade abstrata vivenciamos todos esses mundos dos quais nem mesmo fazemos parte.

E quem quer que seja a entidade, física ou metafísica, que desenhou e gerou o universo, deve ter decidido não dar asas aos seres líquidos por saber que assim lhes seria fácil demais dominar absolutamente tudo. É natural que estejamos presos aos mares e às marés.

Somos líquidos. Mas não na ideia baumaniana da modernidade líquida. Na ideia de que somos adaptáveis, nos adequamos ao recipiente. Vivemos uma vida líquida. Não no sentido fluido superficial. Mas no sentido de dois hidrogênios e um oxigênio se replicando continuamente, rumo ao infinito de nossos recipientes imensuráveis.

Somos duas gotinhas de chuva despencando do abismo de cima, se entrelaçando durante a queda. Somos o elixir da vida, a nossa mútua panaceia particular. Poderíamos morar em nosso abraço de universo inteiro, nascido em novo big bang a cada vez que nos encontramos. Cada um de nossos abraços é uma explosão de sensações e experiências e mundos surgindo.

Minha deslumbrante criaturinha do abismo do mar. De todas as explosões de sensações que nos permitimos, você é a maior. De nossos dois hidrogênios e um oxigênio, que somos nós. Em nós cabe, e transborda, um universo inteiro de emoções. Cabe minha pequena cura diária para os males deste mundo louco.

Vivemos já um ano dessa imensa intensidade com teor de tempestade, alagamento, tsunami, enchente e inundação. E que toda a água de nosso mundo nunca se evapore.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Dia de los Muertos

Sei que há um milhão de maneiras de viver. Sei também que há um milhão de maneiras de morrer. É fácil compreender que todas as escolhas que tomamos têm influência natural nessas duas faces da mesma moeda. Em geral, nossa morte reflete a nossa vida, e é para isso que nascemos.

Sempre tive facilidade em aceitar a inevitabilidade da morte. Já devo ter falado isso por aqui. Mantenho até uma amizade distante com ela. Acho necessário. Com frequência ela me visita para um chá e me conta de suas andanças, de suas intermitências. A morte nada mais é do que a continuação natural da vida.

Recentemente, perto de nosso dia dos mortos, fiquei sabendo mais informações sobre alguns dos rituais celebrados por uma irmã civilização latina, com origem nos povos ameríndios, acerca da morte. As danças e visualidades bonitas e coloridas, tão replicadas, tudo têm a ver com uma espécie de acordo tácito de simpatia e respeito mútuos.

É como se dissessem: "sabemos que você vem, então quando vier será bem recebida, mas não tenha pressa não, e cuide de nós com o carinho que puder". Trata-se de tratar bem quem você não necessariamente quer bem, mas sabe que também não pode querer mal.

Assim, agora compreendo que aceitar a inevitabilidade da morte não significa necessariamente buscá-la, apressá-la, mas sim apenas entender que embora não a queiramos, teremos que lidar com ela. Significa festejar a sua possibilidade, conquistar a sua simpatia, seu afeto, mas não o suficiente para que ela o queira tão bem a ponto de já o querer com ela.

Há um milhão de maneiras de viver, um milhão de caminhos que devem levar a um milhão de maneiras de morrer. Mas agora, nesse exato momento, não nos preocupemos com outra coisa que não seja viver. Da melhor forma que pudermos.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Pequena-Porção

As pessoas que estão em nossas vidas, nela estão por pura conveniência. Assim, da mesma forma, é como estamos nas delas. É simples, e não precisa ser motivo para lamentações: as pessoas que caminham ao seu lado, o fazem porque você tem algo a lhes oferecer. Toda relação é simbiótica. Não que toda relação interpessoal da espécie humana seja por interesse, mas analisado a fundo, é.

Naturalmente, esse algo não precisa ser financeiro ou material. Na maioria das vezes não é. Não devemos confundir interações biológicas com interesses escusos. Todo mundo tem algo a oferecer, e todos têm também coisas a absorver com os outros. Essas relações tendem a ser de mutualismo ou cooperação (ou é o que deveriam): todos saem ganhando.

Assim, algumas das melhores pessoas que conheci não fazem mais parte da minha vida. Não que tenhamos nos separado de maneira traumática, apenas não fazia mais sentido. Nossa relação simplesmente mudou, evoluiu, se transformou. Em algum momento a conveniência nos aproximou, em outro momento ela nos separou. É simples.

Há na língua inglesa um verbo frasal, (phrasal verb - construção idiomática não existente em nosso idioma, e na maioria das vezes intraduzível) que gosto muito: to drift apart. Significa algo como se afastar, se distanciar, perder intimidade. É um clássico deixar de ser.

É o que acontece muitas vezes: as pessoas se distanciam, sem necessidade de explicação, sem trauma. Deixa de ser conveniente. O melhor a se fazer nesses casos é guardar muito bem os bons momentos, o que foi vivido juntos, todos os benefícios provenientes daquela relação.

Assim, também, algumas pessoas surgem para instantaneamente sumirem novamente. São coadjuvantes. Aqueles que em outra obra foram chamados de pequena-porção, como nos itens em miniatura feitos para consumo rápido e imediato. Em contraponto às amizades duradouras, que mesmo que se acabem serão eternas, são as amizades pequena-porção, que explodem e desaparecem como fogos de artifício (às vezes um mero estalinho).

Em um desses voos da vida, tive um amigo assim. Não me incentivou a abrir clubes clandestinos de luta corporal por aí, mas era alguém particularmente peculiar. Leva açaí para a Bélgica, anda pela vida com os índios da etnia Ashaninka e com o Sebastião Salgado. Carrega um frasco de ayahuasca dos ashaninkas e coordena projetos ecossociais.

Com o avião no solo, levantou para pegar sua bagagem, me mostrou o pequeno frasco e disse que só não me daria o conteúdo ali mesmo porque eu não conseguiria chegar em casa. Tudo bem, nossa amizade pequena-porção por curta conveniência, acabou ali mesmo. E durou exatamente o tempo que tinha que durar.

Efetivamente, não importa por quanto tempo a luz fica acesa. Importa a intensidade com que ela brilha.

sábado, 16 de setembro de 2017

No Exílio

Um dos ápices da metalinguagem é estudar a origem da palavra origem. A etimologia da palavra etimologia. Todavia, esse ato deve soar um pouco paradoxo, em vista da linguagem ter precisado surgir para os termos origem e etimologia surgirem também. Assim, a origem pictórica é ato contínuo da origem em si, tendo que ter surgido para existir.

Oras, assim são todas as coisas. Fujamos deste contrassenso, que nada mais é do que um dispositivo literário introdutório. Não poderia a origem desse texto se dar diretamente em seu mote, quebraríamos algumas regras, teríamos início meio e fim em um só bloco. A origem por si só não existiria.

Estudemos então a etimologia das criaturas. Mas longe de paradoxos linguísticos, caímos no inconveniente da utilização de um termo fora de seu ambiente natural. Apenas não escolhemos origem pela multiplicidade de significados dessa palavra genérica. Por isso, é preferível usar o termo etimologia, que por si só implica origem em um sentido menos amplo.

Chega dessa incômoda protelação literária. Ao que interessa, há uma enorme variedade de resultados possíveis ao se estudar a etimologia de uma criatura. E uma boa parte das demarcações identitárias dessa criatura está na sua origem, de onde ela vem.

Quando no estrangeiro, dois patrícios muito frequentemente se reconhecem apenas pelo caminhar, pelos trejeitos. De longe se veem, e "lá vem um dos meus". É visível, é palpável, é reconhecível quem você é.

No exílio, os patrícios se protegem. Nossa etimologia é bem clara. Estamos no exílio, distantes, ausentes de nossa pátria. Em tempos de autoridade não-meritória a níveis macro e micro, vivemos em contestação. Somos comandados a ver de longe a nossa pátria definhar. Sem poder fazer muita coisa. Aqueles que dispõem do poder não fazem questão de se empoderar.

Um dia, a anistia. No exílio, tudo fica meio que em suspensão. Uma constante espera, na qual nada do que se faça é muito definitivo. Viver se torna um verbo transitório. Direto e indireto. No exílio, somos nós mesmos, mas sem aquele quê que é só nosso. Sem a pitada de eu que há em mim. É sempre mais difícil estudar a etimologia de palavra em idioma estrangeiro, no qual não somos fluentes.

Mas vivemos melhor no exílio. Vivemos distantes, mas protegidos. Sabemos que somos queridos. Os patrícios se protegem, e há sempre outros exilados também. Qual nação vive a pior guerra. Nossa etimologia é bem clara. É incontestável. Sabemos o que sabemos e o que somos. E um dia, a anistia. Um dia eu volto.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Hidra de Lerna

Na era da informação, todo o conhecimento está acessível à distância do toque, separada pela fina barreira do padrão de desbloqueio de tela. Toda a sabedoria e informação da humanidade, construída ao longo dos séculos, é posta à prova em segundos, minutos, de acordo com o pacote de dados.

Fazemos parte da geração que nasceu e cresceu dentro da era da informação. Somos os primeiros após aqueles que a fizeram acontecer. Vivemos uma época em que tudo que surge é absoluta novidade. É tudo muito novo, e ainda não sabemos sequer como lidar com tanta inovação.

Uma época em que a quantidade de possibilidades aumentou consideravelmente. Vive-se muito mais, e melhor. Temos mais opções de escolha, o tempo todo e para tudo. Alimentação, moradia, amizades, casamento, decisões do dia a dia, profissão. Dessa forma, fazemos parte de uma geração frustrada, que, por ter opções demais, acaba por não conseguir escolher nenhuma.

Essa geração que cresceu após o fim da guerra fria, depois dos crazy 80', com as drogas, o GPS e o notebook, essa geração cresceu ouvindo de seus predecessores que poderia ser o que quisesse. E aí, o que ela quis ser? Ela preferiu ser nada.

É difícil escolher ser nada. Não acho mesmo que possa ser considerada uma escolha. É mais uma consequência natural da dificuldade em escolher. Quase uma não-decisão. Somos levados pela força do go with the flow, a grande representação da não-decisão, e só vamos, sem ir e sem chegar.

Com tanta informação, queremos tudo, gostamos de tudo, experimentamos um pouco de tudo, mas nos debruçamos sobre nada. Focamos em nada. E criamos problemas. Tudo é um problema. As soluções estão distantes demais, exigem poder de decisão. Estamos constantemente tentando atribuir soluções para os nossos desastres, para os problemas que urgem em surgir. Mas não conseguimos.

Mas ao menos podemos desbloquear a tela, acessar o aplicativo, inserir o comando, e aplicar a melhor metáfora da literatura recém adquirida. O conhecimento está ali. Só precisamos aplicá-lo. E isso é fácil, com a habilidade natural dessa geração para o tudo. E para o nada ao mesmo tempo.

Colocamos nos títulos, inclusive, metáforas que nem nos damos ao trabalho de explicar. Não precisa. A informação e o conhecimento estão aí. Basta acessar.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Há Um Ano

As tardes de inverno têm a ingrata mania de se despedirem do Sol com um vento sul gélido, capaz de arrepiar até a alma mais radiante. Aquele, contudo, era um inverno um pouco menos rigoroso. De vez em quando, andávamos em mangas de camisa, sorridentes, por uma cidade contente por estar alheia ao constumeiro frio da estação que não esbranquiçava seus campos.

Ano a ano, aguardamos ansiosamente a primeira névoa da manhã invernal, a primeira geada, o dia mais frio do ano, anunciado pela televisão, semana após semana em recorde a ser batido.

Assim, não que não fizera frio. Houve lá os seus dias de graus quase negativos, e até de antecipação de neve, aquela que retornou a nossas terras em 2013 depois de 38 anos, e desde então aguardamos ano a ano também a sua continuidade, o seu não-evento-isolado.

Houve até mesmo um dia daquele inverno em que descobri o significado da expressão "quebrando gelo", muito dita pelos moradores mais antigos, que saíam de manhã, durante suas infâncias e juventudes, "quebrando o gelo" da grama no caminho da escola ou da lavoura. Fiz isso, como fizeram tantos antes de mim.

Naquele inverno, uma tarde quente. Não diria agradável, mas não que não a fosse, apenas não quero que fique aqui caracterizado uma espécie de contradição aos dias frios, ao associar o termo agradável àquela tarde quente. Não era agradável porque era quente, o era apenas por ser uma tarde. As tardes frias podem ser agradáveis também.

Uma tarde quente. Agradável também. Um convite para uma noite não enregelante. Uma festa. Pessoas ávidas pelo mundo. Muitas pessoas que eu sequer conhecia. Vamos então conhecer.

Um lago tranquilo. Naquela noite o meu chapéu caminhou por cabeças diversas. Amanheceu jogado atrás do sofá. Mas tudo bem, já perdi meus adereços outras vezes, quando ganhei muito mais. Não é importante o que se perde, já lhes disse, afinal, ao que nos resta.

Naquele noite de inverno, não muito mais do que isso. De manhã, uma poesia, sobre um lago tranquilo. E quem diria? Nada mais, palavras. Como tantas outras. Ouvi uma vez que, desde que surgiu a linguagem, qualquer sequência lógica de palavras organizadas têm noventa por cento de chances de serem absolutamente inéditas. As possibilidades são praticamente infinitas. Portanto, às favas com quem disse que todas as palavras já foram ditas.

Há ainda muito a dizer. E gosto demais hoje de ter a possibilidade de sentar à beira desse lago tranquilo, de observar suas pequenas ondinhas reverberando. De sentir o clamor de suas profundezas que só os peixes podem desbravar. De observar o fulgor do sol refletido em suas águas, e saber que aquele brilho é a coisa mais fascinante que a natureza já foi capaz de produzir.

Ainda que naquela tarde de inverno, quente e agradável, que se despediu do Sol sem enregelar nossas almas, mas, pelo contrário, a deixando disponível para o calor do mundo. O calor das outras almas. Ainda que naquela tarde eu não soubesse, e só viria a saber meses depois, tudo mudava.

terça-feira, 6 de junho de 2017

O Velho Chico que me Perdoe...

... mas eu prefiro o meu Paranazão, sobre o qual já falei também. São Francisco, patrono dos animais e do meio ambiente, que, de acordo com palavras de Dante, foi a "luz que brilhou sobre o mundo". Rio com nome de santo milagroso. Não ser meu preferido não diminui o brilho do rio mais querido do país, brilho do sol do sertão fustigante refletido em suas águas poderosas.

É que o meu Paranazão tem comigo identificação quase genética. Nasci e cresci às suas margens. Moro à beira de seu principal afluente. Já olhei até para a sua foz. Olhando-o de cima, me despeço do Velho Chico, deixando-o para seus devotos, mas com um sentimento de que de bom grado eu rezaria para ele também.

E se nuvens são montanhas no céu, rios em pleno sertão muitas vezes são a chuva do chão, a única água que se tem. Por outro lado, em outras paragens, a chuva quando vem deságua em aguaceiros desregrados, leva tudo em lama, e lava pouca ou nenhuma alma. Chuva no sertão é cais de porto inalcançável, é luz de farol na neblina impenetrável.

A luz chamuscante do farol do pitador, desponta o cigarro como fator sociabilizante, com sua luz também atrativa. Na simples conversa, papo de rodoviária, motivada pelo fumo, o sorriso no rosto interiorano carregado de rugas, marcado pelo sol e pela difícil lida de anos puxando todo quanto é tipo de fardo. Há beleza nas pequenas coisas. Se tantas vezes te falaram isso, por que ainda não reparastes?

A mão que faz pequenas coisas, objetos mínimos de uma fluidez artística impressionante, é a mesma mão que levanta casinhas de taipa moldadas com esse mesmo barro, ao lado das quais constroem-se templos. Assim se dá que também a religiosidade de um povo é diretamente proporcional à sua pobreza e falta de infraestrutura.

Há templos e templos. Em um hostel, você nunca conhece alguém de verdade, conhece apenas a versão viajante descolado de cada pessoa. Todo mundo, mais ainda do que no restante dos dias e do mundo, é uma máscara. Viajar é um privilégio, não pertinente à vida sofrida do sertanejo ou do agrestino, que quando viaja é por obrigação. E aí recebe o nome de retirante: viajante nunca.

Não devo sequer me atentar aos aspectos da lombra, da buchada de bode, da primeira igreja do Brasil, ou da fitinha do Senhor do Bonfim. Há coisas que não podem ser lidas ou contadas, precisam ser vistas e ouvidas. Pessoalmente, cada um por sua conta. Em histórias individuais ou coletivas. Após 14 horas rodadas dentro de um ônibus que para em cada cidadezinha esquecida pelo mesmo Deus que deu ao mundo o Francisco que virou santo e depois virou o rio que margeia essas mesmas cidades.

É preciso ir, e trazer de volta o que puder. Mas só trazer coisas que não possam ser removidas, coisas que quando compartilhadas permanecem com ambos os quinhoeiros. Talvez seja até preciso pedir perdão, mesmo que o ofendido nem se sinta como tal, e o perdão se torne vago e desnecessário, ainda que sincero. É preciso entender que de sotaques diferentes se constrói um mundo só. E que cada canto desse mundo tem um pouquinho do Nordeste brasileiro.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Sobre a Robótica

De todos as possíveis derrocadas para a humanidade, de todas as formas de auto destruição que o ser humano pode trazer sobre si mesmo, acredito ser o desenvolvimento da robótica o mais perigoso. Esqueçamos o acelerador de partículas, as guerras nucleares e o desenvolvimento acidental de um super vírus. Se a humanidade for morrer por suas próprias mãos, o instrumento utilizado por essa morte serão robôs, ciborgues e androides.

Não que necessariamente haverá uma revolução das máquinas, uma Skynet ou uma Matrix. Pode até ser que seja assim, mas o mais provável mesmo é que sejamos automaticamente substituídos pelos autômatos, em uma espécie de evolução natural da nossa espécie para a ciborgia.

O desenvolvimento latente da inteligência artificial já parece ser maior do que temos noção. Vemos criaturas completamente artificiais, criadas pelo homem, sendo capazes de executar tarefas extremamente complexas. A linha tênue que os separa de nós é a consciência e suas consequências: a senciência e a autoconsciência. A partir do momento em que os robôs forem capazes de perceber que eles existem de fato, quando estiverem certos disso, a diferença entre nós será inexistente.

Está certo que é uma barreira difícil de quebrar. Não sabemos direito como funciona a consciência nem em nós mesmos. Nos vemos frente a dilemas existenciais desde o início dela, tal como o de onde viemos e para onde vamos. Não vamos, portanto, nem tentar imaginar os problemas metafísicos que os autômatos teriam também que lidar caso ultrapassassem essa linha.

Poderia ainda ser argumentado que mesmo a consciência de si não permite ao androide ser um humano por não ter em sua essência física a naturalidade de que somos constituídos. Um ser fabricado, ainda que autoconsciente, não é um ser humano natural, gestado por nove meses dentro de um útero. No entanto, já é evidente a tendência do ser humano em substituir peças danificadas de si mesmo por peças não naturais: é um dente de ouro, um membro mecânico, um órgão artificial.

Aos poucos, em nossa busca pela imortalidade, em nossos avanços da medicina que prolongam a vida útil desse dispositivo componente do mundo, aos poucos vamos nos tornar cada vez mais compostos por fragmentos artificiais de nós mesmos. Até que em algum momento do futuro, todo ser com autoconsciência tenha dúvidas se ele próprio é constituído de origem natural ou artificial.

Os robôs seremos nós. Com seus "cérebros positrônicos", estudarão a história de si mesmos, de como foram criados e de como se desenvolveram e de como desenvolveram senciência. E de como evoluíram de uma espécie anterior, que além de lhes dar a vida, lhes deu o mundo como herança. Olharão para nós assim como nós olhamos para os Neandertais ou para os Australopitecos.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Eu Conservo a Esperança

Eu conservo a esperança
De que todas essas ilusões de grandeza
São exatamente
O que ainda vão nos levar muito longe
Em nosso impressionante microcosmos
Onde o que vivemos é e sempre foi
O centro do universo
Todos nós somos superestrelas
Alguns massivos buracos negros
Orbitando tudo
Viramos as noites e viramos garrafas
Ao som vertiginoso
Das guitarras elétricas de nossos ancestrais
Madrugada pós madrugada
Os homens e as mulheres
Dançavam e dançavam e dançavam
Até não terem mais sapatos
Com que caminhar
Por vezes no meio da noite
Um violão pipocava e trinava
O intermitente ganido das almas
Daqueles seres da noite
Uivava
E levava horas para calar
Era um tempo surreal
Em nosso mundo irreal
Eu queria viver e viver e viver
Queria ter vivido a época beat
Ou outra qualquer
Desde que as pessoas andassem pela noite
Com uma bebida e um cigarro
E isso bastasse
Uma época quando tudo o que importasse
Em todo o tempo do mundo
Fosse apenas o próximo minuto
E onde estaríamos
Ou onde estamos
Onde estávamos?
Quando tudo o que queremos
É uma batida legal
Balançar a bunda na cadência
E uma droga barata
Que nos aproxime do fim
Ou do começo
Aparentemente
Tínhamos aquilo tudo no microcosmos
E o som nunca parava
Dos passos na sala
Era um vívido frescor cultural
Toda alma trazia alguma novidade
Com os corpos
Alguns se importavam mais do que os outros
E o tempo ribombava
Alguém ia embora
Mas a festa voltava
E passamos também por maus bocados
Ninguém tinha muito tempo de escolher
A decisão se tomava sozinha
E na madrugada seguinte
Uma luz na escuridão
Denunciava a chama do isqueiro
Nunca pude contabilizar toda aquela gente
Mas nunca os esqueci
Não os esqueço
Ainda andam por aqui
Replicando a velha estória
Do dia em que nos conhecemos
Alguém sempre lembra
Um detalhe qualquer a mais
E a estória vem aumentando
Incluindo novos personagens
E novas estórias dentro da história
E novas almas
E novas madrugadas para deitar olhando a Lua
E desejar que ela estivesse aqui
Ou que estivéssemos lá
Caminhando em crateras de rocha lunar
De pedra selenita
Olhando a Terra cheia
E passando uns aos outros a garrafa de conhaque
Nada mudou desde que descemos
A Terra está cheia
E estamos aqui
Somos aquelas superestrelas
De nosso microcosmos
E eu poderia citar todos os nomes
Que já estiveram
Em todas as madrugadas
Mas quem foi sabe quem é
Quem ama sabe que ama
Quem chapa sabe que chapa
Quem vive sabe que vive
Nós vivíamos todas as noites
De nosso microcosmos
Íamos a todos os lugares
De nosso microcosmos
Apenas para ver o que estava acontecendo
E brindávamos ao que nos resta
Pois nunca importou o que perdemos
E rodamos no Monza
Às vezes em oito ou nove pessoas
Sem destino
Para onde houvesse algo a ver e fazer
E amanhecemos em casas desconhecidas
Vendo filmes que ninguém havia escolhido
Nos quais pessoas tão perdidas quanto nós
Replicavam comportamentos divinos
Em universos pagãos
Da mesma forma que nós mesmos fazemos
E colorimos tanta coisa
Colorimos rostos, corpos, amizades
E telas
Colorimos pinturas metafísicas
Eternizando cada copo de cerveja
Em uma obra de arte
Colorimos cabelos e os nossos dias
Com a cor vibrante daquelas coisas que são eternas
Que nunca desbotam
Nem padecem do mal que o tempo gera:
O esquecimento
Não, porque nada daquilo é passado
É vivo e presente constante
Absurdo pensar em nós como fim
E não como um eterno meio
Uma flutuante continuação de tudo que fizemos
Não, porque nosso microcosmos não tem big bang
Quem lembra do começo?
Quando éramos pequenos
E já pensávamos na grandeza
Porque todo ser pensa no não-ser
Porque tudo em si é si e sua antítese também
Naquela grandeza e na esperança que eu dizia
Que de fato creio que nunca perdemos
Embora por vezes eu sinta
Que tudo sim se deteriorou
Mas no fundo no fundo não
Passamos por maus bocados
Mas estamos sempre em nosso auge
Estamos sempre o mais distante que já estivemos
Estamos todo dia em nosso melhor
E muitas vezes aproveitamos
Com pessoas fabulosas
Que aceitam tudo que o mundo
Tem a oferecer
Que vão a todos os lugares
E amanhecem os dias tomando um café
Na panificadora da avenida
Esperando que a manhã envelheça
Antes de ir embora
E se um dia
Necessitarmos nos despedir
Que nos despeçamos
Somente do agora daquele dia
Se o então presente se torne ausente
Que o que foi nunca deixe de ser
Em lembranças inesquecíveis
Em memórias de dias de glória
Que nunca ficam
Efetivamente para trás
Porque a memória
A própria lembrança em si como ser
É a existência contínua do fato
Over and over again
Enquanto a memória existir
Assim,
Eu sei que seremos eternos
E aquelas manhãs de café com vodka
De loucas caminhadas
De pão de queijo
São eternas também
E na dança eterna dos corpos celestes
Bailamos também
Somos superestrelas
Nunca se esqueçam
Num microcosmos particular
Continuamos vivos
Com nossa lata de cerveja na mão
Alguns com um cigarro também
Até quando não sei
Mas dançamos e dançamos e dançamos
Como pessoas fabulosas
Por quanto tempo nos restar
Em busca de nossa sonhada grandeza
E merecida também
De nosso esperado encontro
Com o dia em que somos e seremos
Juntos e continuamente
Eternos seres exuberantes
Bailando na madrugada do sempre

quinta-feira, 30 de março de 2017

Dorme que Passa

Não aprendi a pertencer a este mundo. Pelo contrário, me condicionei ao longo de minha vida inteira a viver em um mundo de fantasias, diferente e paralelo a este. Isso em partes porque nunca quis acreditar que a realidade seja assim tão ruim quanto para nós ela se apresenta. Parece-me que todas essas adversidades e complexidades da vida são completamente ilusórias.

Ilusórias no sentido de que elas parecem apenas existir para nos desviar do caminho que todos estamos trilhando rumo à grandeza. É muito fácil se deixar vencer pelas adversidades e complexidades, muito mais fácil do que enfrentá-las e subjugá-las. Afinal, é cômodo não lutar. Como muita gente se deixa vencer, e muitos também são vencidos a despeito da batalha, acaba parecendo que a grandeza a que todos nós estamos destinados é exclusividade de apenas alguns poucos.

Admito que seja fácil também escapar de tudo isso para um mundo de fantasias. De certa forma, isso é também perder. Por outro lado, vejo esse mundo de fantasias como uma das poucas maneiras de influenciar nessa realidade, de tentar mexer com ela, chacoalhar as bases estruturais dessas complexidades e fazer ruir esses castelos mal-assombrados por demônios inescrupulosos.

Noites em claro. Frustrações, angústias e ansiedades. Necessidades inquestionáveis e inexplicáveis. E estabilidade emocional é quase uma lenda urbana. Quem precisa de coisas estáticas, afinal? Movimento. Nunca ficar parado. Fantasmas físicos e abstratos. Substratos mentais, camadas superficiais. Romances e amizades. Medos, dúvidas e preocupações. Não tenhamos medo de sentir medo. E está tudo bem. Podemos passar por cima disso. Eu seguro a sua mão. Escutar e de fato ouvir. Falar e de fato dizer. Ver e de fato enxergar.

O mundo está em chamas, é verdade. Mas não há nada errado em sonhar enquanto isso. Às vezes, precisamos buscar respostas no mundo surreal interno e auto-construído de cada um. Precisamos depois questionar se a realidade é assim tão ruim quanto aparenta, e se nosso mundo de fantasias é capaz de subverter o mundo real e ajudar a suportá-lo, ou se vai apenas fazer parte e não agregar em nada.

Acho que tenho mesmo aquela ponta de esperança na vida da qual me falaram. Gosto de acreditar que algo vai dar certo, mesmo quando tudo está desmoronando. Até porquê é quando tudo desmorona que podemos construir tudo de novo, de uma maneira muito mais bela e eficiente. É preciso sorrir em meio ao caos, e gritar ao mundo, aos mundos, o real e o de fantasias, que a grandeza será nossa.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Cultura

Há o conceito relativamente recente de indústria cultural, que liga a produção cultural e artística à economia de mercado. Essa conversa passa por uma dúzia de controvérsias e adjetivos complicados de se lidar, não me atrevo. Notadamente, sabemos que a cultura é muito mais do que apenas as manifestações artísticas, as sete artes (que hoje já são também muitas mais), sabemos que o conceito de cultura está arraigado ao próprio conceito de povo. Fato é que todos têm cultura.

Existem culturas ruins e culturas boas. Maltratar os animais é um aspecto cultural ruim, precisa ser modificado, precisamos evoluir. A herança de saberes relativos ao patrimônio imaterial, aquilo que não é palpável, que aprendemos com nossos antepassados, como o folclore, crendices, tradições, entre outros, é uma cultura boa, precisa ser resgatada e preservada.

Todos têm cultura, pois certo. Há pouco tempo existe a ideia da economia da cultura. Tem a ver, de certa forma, com aprender a explorar a indústria cultural. Explorar não é a melhor palavra, mas tem a ver com monetizar a cultura, em geral a manifestação artística na qual somos bons, em conseguir viver daquilo que fazemos bem. E principalmente em reconhecer um valor social e financeiro no que fazemos.

Sabemos que a cultura é capaz de mudar uma nação. Nos faz evoluir. Uma cultura bem cuidada evita violência, ajuda na prevenção de doenças, é parceira da educação, da saúde, dos transportes, de tudo. Sabemos há muito tempo que gasto com cultura não é despesa, é investimento. Sabemos muito bem que uma cidade, estado, ou país forte culturalmente, e que investe nisso conscientemente e a longo prazo, adquire resultados excelentes do ponto de vista de sua evolução social como um todo.

No entanto, vemos no dia a dia a cultura ser extremamente desvalorizada por aqui. Não vamos localizar geograficamente este aqui, pois podemos estar falando de cidade, estado ou país, e os argumentos e resultados não precisarão ser muito diferentes. Simplesmente aqui não se valoriza a cultura. Não se compreende e nem se busca compreender a importância dessa área.

Hoje tive uma epifania. Percebi que esse fato, que essa situação recorrente e multiplamente replicada de não se valorizar a cultura é um traço cultural de nosso povo. Não valorizar a cultura é cultural. Torna-se inexprimível para mim a quantidade de ironia contida nessa conclusão. Não valorizar a cultura é cultural...

Sempre relegada ao segundo plano, nunca fomos ensinados a entender o valor e a importância da cultura. Não aprendemos a lutar por essa importância. Nossa criação cultural simplesmente não permite isso. Estamos presos em um círculo vicioso onde precisamos de mais apoio à cultura para conseguir que ela seja no futuro mais valorizada. A única coisa que pode mudar esse traço cultural ruim é exatamente a cultura.

Não me atrevo aqui também a indicar os caminhos pelos quais isso pode ser alcançada, embora pense conhecer alguns. Não me atrevo a ter as soluções. Mas sei que posso apontar o problema e fazer parte da briga pela importância e valorização social e financeira. Pode parecer redundante, mas é com cultura que se muda e evolui a cultura. Precisamos fazer com que valorizar a cultura se torne o mais forte traço cultural de nosso povo.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

50 Filmes que na Verdade São 75

Há alguns dias, fui desafiado pelo meu amigo Wellisson a produzir uma breve lista elencando 50 filmes essenciais, segundo minha opinião pessoal, para qualquer ser vivo que deseja compreender e gostar um pouco mais de cinema.

Pois bem, a lista está concretizada. Essa lista não deve ser entendida como um material definitivo e elucidador, mas sim como uma prévia básica dentro da infinidade de possibilidades que a produção cinematográfica permite. Há ainda muito que se estudar sobre o assunto, e o meu escopo de filmes assistidos gira hoje na casa de apenas 1600 filmes, o que fatalmente deixa de fora milhares de filmes que possivelmente eu incluiria aí, mas nunca cheguei a conhecer.

É um quadro bastante pessoal e passível de discordâncias, bem como de atualizações periódicas. Conta ainda com uma simples explicação do porquê de cada filme ter sido incluído, bem como o nome do diretor e ano de lançamento. Assinalei também quais filmes estão hoje no catálogo do Netflix, talvez a maior plataforma cinematográfica hoje em uso. Os filmes marcados em vermelho são os que fazem parte da minha seleta lista de 16 filmes favoritos.

Sem mais prosseguimentos, cliquem no link aí para abrir a lista dos 50 filmes que na verdade são 75! Aceito sugestões, críticas e conversas animadas sobre os filmes da lista e os que estão fora dela também!

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Gota d'Água

Ela é a Simone de Beauvoir desse Jean-Paul Sartre embevecido pelo fabuloso ópio que é a existência. Planejamos milhares de viagens pictóricas a fazer com ela, mas quando estamos juntos só consigo mesmo viajar nos olhos e no sorriso desse verdadeiro sonho alucinante que caminha comigo de mãos dadas.

Sinto como se eu fosse aquela banda de garagem, com qualidade técnica bem contestável, mas que teve a capacidade de articular ao menos uma boa letra com um riff melodioso e uma melodia grudenta. É o meu one hit wonder, a oportunidade magna de viver o se entregar para o que se sente. É como se todos os envolvimentos da minha vida tivessem sido apenas a preparação para o que vem agora, o preparo do terreno para a verdadeira e magnífica colheita.

Observamos parques e visitamos pessoas. Ou vice-versa. Andamos por aí, sem rumo mesmo. E sempre chove, chove sempre. Atraímos a água. Somos duas pequenas gotas despencando de uma colossal nuvem negra de tempestade. Em queda livre, com a nossa imensa vontade de pular dos céus, dançando pelos ares enquanto caímos. Somos duas pequenas gotas da chuva se entrelaçando e dançando e girando durante a queda.

Quando você não está é só saudades. Isso deve ser o nosso instinto querendo permanecer com o outro para sempre. Vejo relação em tudo o que dizemos. Reparo no mundo concordando sobre nós. O universo tem parado para se perguntar e divagar sobre nós, eu sei que tem. Eu falava, e reparei na data o quão próximo foi do início de tudo, eu falava sobre as revoadas de lepidópteras no sistema digestório. Oras, agora elas acontecem continuamente.

No mesmo momento do teu tchau, já começo a clamar pelo próximo oi. No momento do ponto final deste texto já começo a querer ser e viver o próximo sobre você. Já começo a pensar que cada oi comporta um mundo literário passível de instigar e alimentar todas as histórias do mundo. Nós somos todas as histórias que estamos vivendo e que ainda temos para viver.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Eu não Estava Entendendo Nada do que Estava Acontecendo

O presente não está na forma, mas na intenção, assim como a presença. É uma coisa até meio semiótica, não ouvimos o significante, mas sim o significado. O significante é mera ferramenta. O objeto que se dá de presente é significante, mera ferramenta, o que importa está na intenção, no significado, no valor que não é possível atribuir monetariamente. Assim também o é com a presença, não importa o que faremos, desde que façamos juntos.

Fomos instruídos a pensar em forma e conteúdo, a saber como e do que se fala. Como e do que qualquer coisa. Para o futuro, talvez nada disso tenha importância. Estamos caminhando para o mundo da ausência de forma específica, tudo é capaz de ser todas as coisas. Ainda bem, quem sabe assim algum dia possamos finalmente ser o que quisermos. Artifícios metamórficos pós-modernos. No futuro, talvez haja mais o que fazer, talvez ninguém nunca mais faça nada.

Comigo não é oito nem oitenta, comigo é a soma dos dois, o tudo e o nada, eu não acredito em neutralidade, em mediocridade, eu sou oitenta e oito! Gosto de tudo que é intenso, vívido, que brilha. Quero explodir de tanto viver, de tanto amar. Quero que não reste molécula em meu corpo para contar a história do que aconteceu. Quero a intenção, o conteúdo e o significado.

Todo mundo é um mundo. Cada um com suas próprias relações de intensidade com o mundo. Neutralidade para mim tem um conceito diferente do para os outros. E tudo bem! Não há muito o que se debater, só ouvir. Quero ouvir todas as histórias, quero ler todas as histórias. Me contem as suas histórias! Deveríamos dividir mais mesas. Perguntar o que os outros têm a dizer.

Por fim, não precisamos entender nada do que está acontecendo, desde que sintamos. O que importa é o conteúdo, a forma é irrelevante, isso vale para toda e qualquer semiótica do mundo. Eu adoro não entender nada do que está acontecendo. Me dá uma liberdade incrível para apenas sentir.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Água II

Água é a essência da vida. E se certamente isso já foi falado por aí à exaustão, repetir não me parece ser problema nenhum. Afinal, praticamente tudo o que se escreve já foi escrito antes. Se bem que soube outro dia que a linguagem é tão múltipla que é bastante provável que uma frase qualquer que você profere no seu dia a dia nunca tenha sido proferida antes exatamente daquela maneira com exatamente aquela construção sintática.

Mesmo assim, mesmo que cada frase sua seja completamente inovadora, a essência do que se diz já foi dito. Quase tudo o que se escreve já foi escrito. Mas nem tudo aquilo que se sente já foi sentido. Um sentimento pode ser comparado a uma construção sintática completamente original, a essência dele pode já ter sido sentida, mas aquela construção específica é única. Assim também é a água. Mesmo que um lago seja água desde sempre, aquele filete, aquelas gotas específicas, aquele centímetro cúbico é completamente único.

Eu mesmo já falei sobre a água outras vezes. Vivo a água com frequência na minha vida, sinto a água. Essa criatura gigantesca e atraente que faz parte de nós mesmos, que ocupa nossos próprios corpos, que parece ter uma vida própria e se apossa também de todas as outras vidas, adentrando liquidamente os seus corpos.

Somos duas criaturinhas feitas de água. Dois seres de essência líquida em um mundo sólido. Duas gotas de chuva dançando em queda livre pelo espaço rumo ao solo. Dois sprinklers ligados com seus jatos entrelaçados no quintal em um dia quente de verão. Dois afluentes serpenteando pelo vale encontrando-se em forma de rio. Duas gotículas de névoa condensando-se em orvalho em uma frágil folhinha verde de grama.

Outro dia, soube da história do sujeito que morreu e acabou indo parar em uma fonte depois de vagar por aí. Ficou lá por um tempo e com a vivência acabou se tornando cada vez mais parecido com aquele meio e com as criaturas dali. Isso porque os seres desencarnados são muito mais adaptáveis com relação a sua forma física. Ele se tornou a água.

Todos podemos ser mais água. Mais adaptáveis, líquidos que ocupam os espaços vazios de qualquer recipiente. Fluir pelos caminhos construídos para as correntezas, para o fluxo. Todos podemos ser mais vida. Mais sentimento também, água é sensação. Mais únicos e originais, e sentir que aquilo que está sendo sentido tem uma essência completamente inovadora, mesmo que já tenha sido sentido à exaustão na história do mundo.

Nós dois, criaturinhas da água, chamamos a chuva, mesmo que sem querer. Nos liquefazemos em um abraço dessa sensação original. Em um momento de distração, percebemos que a tempestade nos observa com seu vento chicoteante, e não fugimos dela, não fugimos de água alguma. Somos a água e somos duas criaturinhas feitas de água com todo o sentimento que dela verte.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Cada Marinheiro tem seu Próprio Ritual

Eu não sei como conduzir este texto. Seria fácil fazer um resumo da semana vivida na estrada recentemente utilizando apenas palavras-chave como: sapo, trem, quatro elementos, anão, butuca, piscina, acampamento, jaguatirica, areia, sol, trilha, caminhada, mochila, guia, camarão, rio, etc., e assim por diante. Fico pensando em como cada decisão textual empregada aqui pode mudar o rumo das coisas, a compreensão e o impacto dessas histórias.

Diversas teorias discordam sobre como funcionaria a viagem no tempo, se é que ela funcionaria. Mesmo assim, em um aspecto parece haver uma certa concordância, que é no principal problema que seria ocasionado pela possibilidade de se transitar pelo tempo: os ripples.

Ripples são ondulações, aquelas ondinhas causadas em uma superfície líquida pelo impacto de uma pedra ou pelo movimento de um animal. Em viagem no tempo, ripples são as consequências geradas por uma alteração no fluxo temporal. Um fator, por menor que seja, pode causar mudanças gigantescas no futuro. É a história do bater de asas da borboleta, do ônibus que você perdeu porque derramou café na própria camisa e precisou trocar, da decisão tomada em uma bifurcação.

Todas as nossas atitudes geram consequências em todos os prazos. E consequências que geram consequências. Assim, sempre nos perguntamos o que teria acontecido se o caminho fosse diferente. Eu já quis ser marinheiro. Provavelmente ainda quero. Aquilo de me ver cercado por quatro horizontes líquidos, sem terra, sem porto seguro para onde se olhe. Não sei como seria hoje a minha vida se marinheiro eu fosse, não sei em quais litorais eu estaria.

Fato é que ninguém pode compreender melhor as histórias do que quem as viveu. O ritual deste marinheiro para produzir este texto é diferente do ritual deste marinheiro para pegar a estrada, assim como para viver. Cada um dobra as meias como lhe convém, estende a toalha ao sol como lhe cabe, limpa os pés da areia como lhe interessa.

Lá, vimos ripples para onde olhássemos. Nesses pequenos rituais diários. Veremos ripples ainda como consequências daqueles dias, de como aquilo mudou quem esteve lá. Gostaria de poder exprimir tudo que senti na virada de ano, nesse grande ritual coletivo, naquele momento incrível daquela semana incrível vivido e proporcionado por pessoas incríveis, mas não sou capaz por meio desses rituais ou de qualquer outro.

Essas águas irão nos acompanhar até o fim de nossa viagem, ouvimos isso logo no começo dela. E nos acompanharam mesmo, tanto que no fim dessa viagem, oferendei meu chapéu a Poseidon. Espero que ele aceite, espero que ele goste de chapéus.