segunda-feira, 23 de junho de 2014

Capítulo 3 – Eterno Flerte (Somos Uma Aberração Sentimental)

Precisamos conversar. A todo o momento, sem parar, é o que mais precisamos. Precisamos um do outro, e não paramos nunca de falar. Sinto a constância da presença, me ajudando a sorrir, enternecendo essa alma. Criamos um universo próprio, onde o mundo gira ao nosso favor. Girassóis enfim estão naquela nossa mesa, onde paramos um dia para delirar.

O que somos é um eterno flerte, de eternos olhares cativantes. De compromisso controverso, cantado a ventos particulares. Na rotação de um sol particular, que gira parado, vejo toda essa beleza verter em flor, e todos esses raios em um brilho a esvanecer. As madrugadas não têm graça sem você. É estranho ser ausente mesmo com tanta presença.

Mas seria melhor apagar esse sol? Matar essas flores que giram em seu próprio caule? Seria melhor destruir essa coisa magnífica que cultivamos dentro de nossas cavernas? A dúvida destroça sentimentos, arrebenta vontades, lacera as intenções. Nos sentimos oprimidos pela vida, em nossa solidão compartilhada. E conversamos sobre isso, e sobre todas as outras coisas que precisamos conversar. É tudo tão singelo!

Mas não devemos deixar de assim ser, é injusto precisar perder. Eis que sentimento nenhum precisa ser recíproco. Digo que te quero bem, e isso basta. Ouço que bem me quer, e isso basta. Pois que assim deve ser, o querer por si só, o gostar suficiente, sem cobranças ou faltas. E nos queremos bem, nos autorizamos a gostar, nos entendemos em nossos gostares. Afinal, gostamos do que somos, e somos, e continuamos a ser, uma linda aberração sentimental.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Capítulo 2 - Encantadora

Todos aqueles aos quais é permitido uma vez verem a glória, devem ter consigo para todo o sempre de tal feito a lembrança. Por vezes a lembrança há de não ser suficiente, pois que se deseja mais, a manutenção da glória. Estou viciado na glória. Estou viciado em você.

Parada no tempo, a noite voltou a correr pouco depois. E que tempos foram aqueles? Tempos de auroras programadas em etilismo vinícola. Com o amanhecer daquela noite, com os primeiros raios de sol de tão brilhante estrela, com a primeira e mais magnífica aurora dos novos tempos, vieram tempos de uma luz encantadora.

Sou arqueólogo encontrado, em sítios anciãos, que relembram vidas perdidas há muito tempo. Vidas que deixaram marcas. E o que somos além das marcas que deixamos? Quero saber cada vez mais sobre essas pinturas rupestres, que nunca param de surpreender, estuda-las. E elas trazem sempre uma peculiaridade nova e ainda mais encantadora.

Poesia, astronomia, filosofia, tudo é muito apaixonante. E o que fazemos dessas coisas, ainda conversamos com estrelas, sejam elas solitárias ou não. Ainda escrevemos e reescrevemos, sejam esses escritos para o mundo ou não. Ainda discutimos rumos e progressos, planejamentos e projetos inacabados. De maneira sempre encantadora.

Sois a mais linda das Asteraceae. Semeado. Colhidos. Encantadora.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo 1 - Uma Noite que Parou o Tempo

Era uma noite trágica que engolia a si mesma, de forma autófaga, com ventos quentes amplificando o barulho cálido da juventude frenética. Jovens passavam com seus copos insanos, embebidos nesse néctar que tem o poder de distorcer a consciência e a realidade, que nos faz mais fortes e mais fracos do que geralmente somos. O ar estava quente, a noite estava quente, os jovens estavam quentes, o mundo estava frio.

Nunca sabemos o que nos espera após a curva de cada esquina, após a virada de cada ponteiro do relógio, após as cercas de metal de cada bar. Vagando por sítios arqueológicos anciãos, procurando lindas pinturas rupestres servindo como um rudimentar design de interior para gélidas paredes de pedra. Observando o infinito além da escuridão alimentada pelo excesso de luzes no chão, procurando por lindas formações que permeiam os grandes vazios universais há muito mais tempo que a nossa existência.

Assim, a noite tendia ao fim, como fazem as coisas lineares. Estava fraca e decrépita, frustrante é verdade. Jovens animados continuavam com seus copos cheios e vazios ao mesmo tempo, chacoalhando suas almas para lá e para cá, ao ritmo do emaranhado de vozes que emanava da coletividade em ressonância melodiosa. Um copo meio cheio ou meio vazio é sempre ambos.

Mas fevereiro é mesmo o mês mais lindo. Um caminhar interrompido, uma guinada inesperada, um chamado de uma força desconhecida qualquer; trazido das profundezas das menores partículas, que comandam com seus movimentos os futuros de todas as coisas. Sim, como se tudo estivesse assim pré-agendado. E ares de boteco uma vez mais, uma névoa que sobe, como vapor vindo de tanto calor das almas daqueles jovens. E aqui estamos, como que magnetizados, olhos nos olhos.

Parado em volta está o resto do mundo inteiro, com seu subitamente desinteressante caminhar. Surge um recipiente do nectarício distortor da realidade. E então a realidade se distorce de forma ainda mais intensa em esmeraldas magnéticas, de pinturas rupestres em lindas formações, que escrutinam as gélidas paredes de pedra dos vazios universais. Os pios das corujas estão suspensos no ar; o arrastar das criaturas caminhantes para; o vapor que subia está estático; a confluência dos rios está interrompida; os jovens todos estão subitamente inertes; tudo está calmo. Tudo está fixo nessa noite que parou o tempo.