terça-feira, 26 de agosto de 2014

Contemplação (ou Mini-Estórias)

A nossa gente anda por essas ruas, sempre esperando que alguma coisa aconteça. As vezes acontece, as vezes não... As ruas têm um sabor amargo, e te esperam na esquina, prontas a lhe apontar um canivete na direção das entranhas. Nas rubras faces da nossa gente, os desenhos formados pelas rugas da indiferença, que não são físicas. Nos corpos, o dissabor e a ausência de sabor, corpos insossos e insalubres. Mas observamos tudo por essas ruas.

Eu estava caminhando na areia, de pés descalços. Oras, uma vez achei um caco de garrafa imenso e ameaçador. Olhem sempre para os seus pés, tomem cuidado onde pisam, mas não olhem nunca para o chão, não carreguem o semblante dos derrotados. Na areia, o vento formava arabescos, mini-dunas em um terreno não acidentado, e eu perseguia o pôr-do-sol. A areia impulsionada pelo vento ricocheteava em meus pés, meus pés participando nos arabescos, em desenhos que traçam histórias imemoriais, pois que o pó nunca se lembra de quando foi rocha. E eu perseguindo o pôr-do-sol.

Não tenho amigos de infância. Todo mundo que conheço hoje começou sua trajetória em minha vida nos últimos 15 anos, o que é bem pouco. Aos poucos vamos perdendo contato com tudo, nossa cabeça vai dispersando. Essa noite vai ter sol. Vai ter apocalipse também. Venho tentando fazê-los convencer de que são parte dessa obra toda, dessas coisas que andam por aí se digladiando, ultrapassando pelo acostamento. Todos fazem parte de alguma coisa.

Certa feita, conheci um senhor japonês, um velho de velhices que apenas os japoneses atingem. Velhices sábias de velhos que pegam moscas com hashis. Ele contava da época em que imigrara, sozinho, por ser solteiro. Carregando consigo apenas seu rosto lívido de jovem japonês em terra onde apenas a mão-de-obra importava. Importava-se mão-de-obra japonesa, e de quem mais fosse solteiro, sozinho e possuísse jovens braços para trabalhar. Ele olhava galinhas por aí, e não sabia falar o brasileiro. Oras, galinha nenhuma precisa de idioma.

Quando você passa 92 anos contemplando as coisas, você deve saber um pouco mais sobre elas. Sobre tudo o que acontece e desacontece por aí. Sobre o que as pessoas esperam e desesperam. Já demos bolo, e demos tantas outras coisas também. E estamos por aí, continuamos por aí. Acho que não temos muita escolha.

Havia tristeza em seu sorriso. Havia também uma beleza singela, daquela de sorrisos que mais saem dos olhos que dos lábios. Mas assim mesmo era um sorriso. Era ambiguidade, pois que é assim que são todas as coisas tridimensionais, o que não pode ser medido em grandezas físicas que ocupe-se com suas unilateralidades. Sorrisos são ambíguos, e isso é belo. Eu a observava enquanto ela sorria um sorriso triste. Triste e belo.

O sujeito ergueu-se de sua parcialidade lacônica. Subiu em um balcão de madeira e começou a gritar, seus gritos reverberavam em paredes próximas, e em gotas de chuva que flutuavam a poucos metros. Se as chuvas fossem capazes de refletir os sons, os trovões seriam muito mais assustadores. Reverberam também as histórias. E o que podemos fazer, além de simplesmente olhar? Ele estava lá sobre o balcão e gritava. Todos olhavam, absortos agora em seus próprios silêncios lacônicos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Comodismo

Atiro pedras em galinheiros por aí, mas nunca saio correndo. Gosto de ver o circo pegar fogo, mas gosto de estar dentro do circo. Onde conseguiste essa pedra tão bonita? Ela é perfeitamente oval, lisa, como aquelas pedras de fundo de rio, moldadas pela correnteza dos anos, por essa afluência vívida que passa por nós dia após dia, nos tornando ovais e perfeitamente lisos.

Qual a razão de sair um dia de onde estivemos? Qual a razão de lutar batalhas perdidas, enfrentando inimigos imaginários? A derrota está dentro de cada um. E quando não há batalha, não há derrota. Podemos apenas sentar à beira do precipício, e parar observando o abismo que se estende verticalmente aos nossos pés. A vontade de pular será imensa, maior que o abismo. E, ah!, que batalhas maravilhosas, nem perdidas nem imaginárias, enfrentaríamos nessa queda. Mas oras, certos saltos de fé não devem nunca ser dados.

Os piores abismos são os horizontais. Aqueles que nos fazem querer mudar tudo, abandonar tudo, nossos relicários acumulados ao longo de vidas inteiras. O mais importante dos relicários é a memória. Para cair nesses abismos é necessário muito mais do que saltos de fé, é necessário abandonar até mesmo os nossos relicários.

Toda atenção é dividida, tudo depende do foco que se dá. É difícil ser bom em tudo, pior é ser excelente em nada. Prioridades e vertentes nunca exploradas, ou exploradas superficialmente, rios caudalosos nunca nadados. E mais importante é o interesse que se dá, mas você tem coisas mais importantes para lidar. Queremos abraçar o mundo todo, com os mesmos braços, e talvez faltem abraços.

Queremos mudar, queremos tudo o que os abismos horizontais e verticais nos têm a oferecer. E estendemos braços em abraços pequena-porção, até que sinta-se o mundo inteiro abraçado. Queremos mudar, mas não percebemos que de fato mudamos, mudamos em pequena-porção, em pequenos saltos de fé, que um dia se tornam abismos, que um dia abraçam e mudam o mundo todo.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Epifanias Hereditárias

Não se atinge uma compreensão superior da existência sem passar antes por tantos quantos estágios inferiores. A cabeça gira, vai e volta, sobe e desce, e descobre-se a diferença entre tontura e vertigem. Parece falta de ar, ou psicotrópico, epilepsia, quem sabe nirvana. E no fim, é só pensamento, é troca de correntes elétricas nos circuitos do cérebro. Circuitos que podem também sofrer dispneia, alucinação, curto-circuito, e realização.

Nosso sangue está borbulhando, repleto de moléculas de oxigênio indo, de gás carbônico vindo. Mas não somos respiração celular, somos imensos pulmões sintéticos expirando muito mais do que inspirando. Exalando ares moribundos, buscando compreensões inalcançáveis, nirvanas intangíveis. Não acredito em redenção, é sempre bom frisar.

Somos partículas em suspensão, como aqueles pedacinhos minúsculos de poeira flutuando em uma réstia de luz que invade a sala em uma tarde de outono qualquer. Então, em um entendimento repentino, saímos do próprio corpo, e o vemos em movimento, em terceira pessoa. É a mente em suspensão, buscando por si só as respostas que conscientemente nunca podemos nos dar. O problema é estar consciente.

Doenças nunca diagnosticadas são apenas sintomas, são batalhas nunca travadas. Pois que anticorpo nenhum lutaria sem saber o que está enfrentando. Pelo menos não conscientemente. E por isso nossa mente viaja, procura doenças nas quais se apoiar. Epilepsias, dispneias, alucinações e nirvanas.

Estamos aqui para inspirar. Saímos de nós mesmos para inspirar. É o que mantém a vida, afinal. A cabeça continua girando, e buscando suas respostas. Flutua nas réstias de luz que cruzam as fronteiras acima de nossas cabeças, que nossas mentes insistem em cruzar. A cabeça gira, vai e volta, sobe e desce, é tontura e é vertigem. Parece falta de ar. Parece psicotrópico. Parece epilepsia. Parece nirvana.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Na Maquiagem: Um Sorriso

Passou o chapéu pela plateia extasiada. Vários empunhavam moedas e notas de pequeno valor, fazendo bom uso de seus trocados, em troca do trabalho apresentado pelo homem de faces coloridas e roupa espalhafatosa, que ocupa o centro do palco no qual transformou até mesmo a rua.

Um sujeito mais generoso libera uma nota de grande valor. O homem de faces coloridas faz uma galhofa de quem lhe deu apenas os trocados. E isso é, contraditoriamente, um agradecimento. O homem de faces coloridas caminhou, há poucos minutos, de um lado para outro de seu palco-rua, abordando as pessoas das maneiras mais inusitadas. Um jovem distraído assustou-se de pular. Um pai preocupado o afastou com um chega pra lá.

É mais tarde, e o palco-rua é ocupado por outros artistas. Em minutos de outrora ficaram os gracejos e troças. Em um canto qualquer, em meio a outras atribuições e atribulações, frequentes mesmo nos dia a dias dos que mais sorriem, sentado está o homem. Deve tentar se misturar aos demais quando não está em seu palco-rua, ninguém pode ser a estrela de todos os shows. Mas suas faces permanecem coloridas.

Abraçado está o casal. Ela esconde as faces entre as mãos, ele a abraça em braços retentores de universos. Ela chora copiosamente, ele leva consigo um semblante carregado. Parecem estar brigando, ou o terem feito há instantes, como fazem os casais. Ele a segura carinhosamente, a acalenta. É o pedido de desculpas na tarde de quem já pediu aplausos. No palco-rua, o mundo continua. Na maquiagem: um sorriso.

domingo, 3 de agosto de 2014

Não Sei Mais Escrever

Meros signos para descrever o mundo ao nosso redor. Erigir uma... uma... uma? Qual é a palavra mesmo? Cultura... Sociedade... Humanidade... O que não definir. Erigir essa coisa toda que acordamos para ver todos os dias, para ajudar a erigir todos os dias; apenas porque sentimos um dia a necessidade de dizer uns aos outros qual era a merda que estava ocorrendo dentro de si mesmo. E então o teu coração deixa de ser um músculo com quatro cavidades destinado unicamente a bombear sangue. Sim, porque isso é vulgar demais.

Falemos de como ocupar esse músculo. Pois que deveria ser com fibras, e carboidratos, e proteínas, e essas coisas todas que acordamos todos os dias para viver. Oras, mas não... escolhemos preencher esse músculo com sentimentos. E por essa escolha, pagamos continuamente, erigindo culturas, sociedades e humanidades. Com a vaga intenção de preencher músculos por aí, transformo 15 linhas de conto em página e meia de roteiro.

Comunicar é preciso. Não poderia haver maior inverdade, não que seja mentira, apenas não é verdade. Por vezes, me escondo em um buraco cuja profundidade está exatamente ao nível de meus olhos. Dessa forma vejo o mundo, e as coisas nele sendo erigidas, do nível do chão. Me abaixo, me escondo na escuridão no buraco, e quando volto a me levantar, para ver o mundo do chão novamente, ele muda completa e drasticamente. E isso não resolve.

Essa angústia existencial que não passa, e o seu sorriso sem graça. A vida demora demais para acontecer. No entanto, ela acontece muito rápido. É um complexo e indistinto paradoxo, desses muitos que acordamos todos os dias para ser. A verdade é que não sabemos o que está acontecendo por aí a maior parte do tempo. O que acontece é que estamos alimentando e preenchendo esse músculo, com culturas, com sociedades, e com humanidades. O fato é que eu nunca soube.