A nossa gente anda por essas ruas, sempre esperando que alguma coisa aconteça. As vezes acontece, as vezes não... As ruas têm um sabor amargo, e te esperam na esquina, prontas a lhe apontar um canivete na direção das entranhas. Nas rubras faces da nossa gente, os desenhos formados pelas rugas da indiferença, que não são físicas. Nos corpos, o dissabor e a ausência de sabor, corpos insossos e insalubres. Mas observamos tudo por essas ruas.
Eu estava caminhando na areia, de pés descalços. Oras, uma vez achei um caco de garrafa imenso e ameaçador. Olhem sempre para os seus pés, tomem cuidado onde pisam, mas não olhem nunca para o chão, não carreguem o semblante dos derrotados. Na areia, o vento formava arabescos, mini-dunas em um terreno não acidentado, e eu perseguia o pôr-do-sol. A areia impulsionada pelo vento ricocheteava em meus pés, meus pés participando nos arabescos, em desenhos que traçam histórias imemoriais, pois que o pó nunca se lembra de quando foi rocha. E eu perseguindo o pôr-do-sol.
Não tenho amigos de infância. Todo mundo que conheço hoje começou sua trajetória em minha vida nos últimos 15 anos, o que é bem pouco. Aos poucos vamos perdendo contato com tudo, nossa cabeça vai dispersando. Essa noite vai ter sol. Vai ter apocalipse também. Venho tentando fazê-los convencer de que são parte dessa obra toda, dessas coisas que andam por aí se digladiando, ultrapassando pelo acostamento. Todos fazem parte de alguma coisa.
Certa feita, conheci um senhor japonês, um velho de velhices que apenas os japoneses atingem. Velhices sábias de velhos que pegam moscas com hashis. Ele contava da época em que imigrara, sozinho, por ser solteiro. Carregando consigo apenas seu rosto lívido de jovem japonês em terra onde apenas a mão-de-obra importava. Importava-se mão-de-obra japonesa, e de quem mais fosse solteiro, sozinho e possuísse jovens braços para trabalhar. Ele olhava galinhas por aí, e não sabia falar o brasileiro. Oras, galinha nenhuma precisa de idioma.
Quando você passa 92 anos contemplando as coisas, você deve saber um pouco mais sobre elas. Sobre tudo o que acontece e desacontece por aí. Sobre o que as pessoas esperam e desesperam. Já demos bolo, e demos tantas outras coisas também. E estamos por aí, continuamos por aí. Acho que não temos muita escolha.
Havia tristeza em seu sorriso. Havia também uma beleza singela, daquela de sorrisos que mais saem dos olhos que dos lábios. Mas assim mesmo era um sorriso. Era ambiguidade, pois que é assim que são todas as coisas tridimensionais, o que não pode ser medido em grandezas físicas que ocupe-se com suas unilateralidades. Sorrisos são ambíguos, e isso é belo. Eu a observava enquanto ela sorria um sorriso triste. Triste e belo.
O sujeito ergueu-se de sua parcialidade lacônica. Subiu em um balcão de madeira e começou a gritar, seus gritos reverberavam em paredes próximas, e em gotas de chuva que flutuavam a poucos metros. Se as chuvas fossem capazes de refletir os sons, os trovões seriam muito mais assustadores. Reverberam também as histórias. E o que podemos fazer, além de simplesmente olhar? Ele estava lá sobre o balcão e gritava. Todos olhavam, absortos agora em seus próprios silêncios lacônicos.