segunda-feira, 28 de abril de 2014

Aparando Arestas

Ou Tirando Rebarbas, também seria um título condizente. Sou péssimo com títulos, nunca sei o que colocar nas letras que pairam acima do resto dos textos. Mas sei que neles odeio artigos, procuro evitá-los sempre. Me utilizo de substantivos, adjetivos, verbos, palavras unas enfim. Artigos são limitantes, denunciantes, rotulantes, o, a, os, as, e todos os mais.

É sempre muito difícil dizer precisamente o que se sente, com todas as palavras corretas. Você tenta uma aliteração, e ela sai parecendo uma metonímia. E todos os teus eufemismos parecem hipérboles. É difícil definir o que são as coisas, o que são os sentimentos, quando eles nada mais são do que aquilo que simplesmente não pode ser definido.

E se tudo o que deixamos de dizer por não poder fazê-lo, ou por ser difícil demais (no fim das contas, eu odeio a palavra 'difícil', ela é nada sonora e ainda difícil de escrever, e sendo difícil de escrever ela é uma das poucas palavras que é o seu próprio significado). Mas se, enfim, todas as coisas que nunca dizemos, acabassem se acumulando em pitorescas caixinhas imaginárias, como relicários intocados, e não intocados por estarem muito bem escondidos, mas apenas por não existirem. Se lá se acumulassem para que um dia fossem ditas, assim, de supetão?

Se pudéssemos escolher o momento apropriado para tocar a alma das pessoas? Ou para destruí-las, oras, pois que é sempre uma opção... E esse momento não precisa ser apropriado, ele apenas deve acontecer. Em tempos hipermodernos, em que falamos do tamanho das almas, e de seus conteúdos ou falta dele, e logo depois falamos de cartões que por aí já estão voando; temos métodos para isso. E nossos métodos são a protelação, o deixar para depois. Mesmo o falar sendo tão importante.

Dessa forma, acredito que deve haver um momento na vida de cada sujeito, no qual ele deve parar e aparar algumas arestas. Acredito também que há sempre um momento na vida de cada sujeito, no qual ele sabe que a morte de fato chegou e não tem mais volta. Ele pode saber isso com uma grande antecedência, ou apenas milésimos de segundo antes. Se a antecedência assim permitir, essa então deve ser a hora de tirar algumas rebarbas.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dezessete Cartões

Vivemos tempos hiperbólicos, pós-modernos, estrambólicos, hipermodernos, neologistas. Nos condicionamos a pensar estrategicamente em aceleração, pensando em diversas plataformas de tempo-espaço de uma só vez. Escrevemos por aí nossas opiniões, vontades, desejos; em telas piscantes, iluminadas por pequenos pixels em constante mutação para a formação de letras digitais e, não menos, fictícias.

Por isso mesmo, escrevemos menos de forma física, caneta no papel. A expressão caligráfica de nossas opiniões, vontades e desejos. Demora mais, a compreensão é dificultosa. Mas foi assim que de fato aprendemos, para depois apenas mudar de plataforma.

Então pode parecer retrógrado, pode parecer arcaico, mas pode parecer também belo e singelo, mas lá se vão dezessete cartões-postais. Número não cuidadosamente escolhido, pelo contrário, extremamente arbitrário, apenas a junção de um mais um mais um ao total de dezessete. Oras, o número que leva meu gato à minha perna, e vez por outra perguntam o porquê, e é apenas um número bonito.

Dezessete cartões postais, nas próximas semanas sendo entregues. Temática nenhuma, apenas temática cartão-postal. Cartões-postais que levam em sua face estampada uma imagem histórica da Cidade Símbolo, e levam em sua face oposta uma poesia pequena, três ou quatro versos. Nenhum tendo relação concreta alguma com os outros: poesia, imagem ou destinatário; apenas a junção desses fatores postos também arbitrariamente.

Enfim, posto o pressuposto, dezessete cartões-postais, escritos à caneta em expressão caligráfica, para dezessete destinatários, contendo dezessete imagens e dezessete poesias. E que serão entregues nas próximas semanas.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

A Joaninha

Ninguém pergunta aos céus o que acontece nas abafadas tardes de Curitiba. Só queremos saber dos dias chuvosos e tristes, padrão complementar do gosto dessa capital mais alta e mais fria (e, controversamente, mais europeia) do Brasil. Andamos por aí, com o sol nas cabeças, esperando que o tempo melhore, e, vez por outra, esse mesmo tempo deve ser o assunto que permeia o nosso contrato social e as amenidades das conversas.

Sendo assim, em veículos coletivos automotores, o tédio da viagem por vezes cria parcerias pouco conexas, e insípidas à primeira vista. Oras, pois que são os ônibus os melhores lugares para amar. Para que o amor seja eterno apenas durante aqueles quarenta e cinco minutos de viagem, do Pinheirinho ao Santa Cândida, do Centenário ao Campo Comprido, do Colombo ao CIC.

Duas figuras de avançada idade sentam-se lado a lado às minhas costas, com toda a carga e história do mundo às suas costas. Amenidades aqui e acolá, e “como pode esse tempo ser tão louco?”, para que venham assuntos mais complexos, mais bem desenvolvidos. E “oras, eu também fui militar”. Duas partes de uma mesma conversa, feminina e masculina, somadas suas idades, quem sabe?, quiçá um século e meio ou mais.

Uma joaninha pousa em meu cabelo. Um desses tantos animaizinhos praticamente insignificantes perante nossa auto proclamada magnitude e importância no universo. Vermes insolentes, mal sabem que cada joaninha é mais importante que a humanidade inteira. Dessas criaturinhas que entram em ônibus sem perceber e sem saber qual rumo tomaram, e para qual tipo de trás ficou a sua outrora casa, se é que disso eles precisam e têm.

A parte feminina da conversa se oferece para expulsá-la de meus cabelos. Lá se vai a joaninha com o vento, em busca de sua casa perdida. A conversa continua e desenrola, presto atenção furtivamente, roubando cada verbo e substantivo para o meu deleite particular. As palavras proferidas pela dupla anciã se alojam em minha mente, e me fazem acreditar em qualquer coisa de belo nesse mundo.

Os pneus do ônibus cingem os asfaltos do tempo. Estamos em 1960, 70, 80, passamos por décadas a fio nas ruas curitibanas, enquanto os idosos transportam suas histórias para o insensível 2014. Senhor e senhora parecem ter tanto em comum, mas... e não são assim todas as pessoas, explorados os pontos corretos? Não, de fato não são. Somos todos tão diferentes quanto dizem nossas íris e nossas digitais, e diriam nossas zebras se as tivéssemos. Não existem coincidências.

No fim todo tubo (íris, digital e zebra curitibana), se aproxima; e é disso que são feitos os ônibus nos asfaltos. Toda conversa tem um fim, pois que fim todas as coisas têm. No entanto, aqueles verbos e substantivos alojados em minha mente, vivem eternamente. Eterna mente. Todas as coisas que um dia existem, existem para sempre. Cada velhinho para um lado, a parte masculina antes, a feminina dois tubos depois.

Talvez nunca mais se encontrem nos ônibus, ou mesmo nas ruas, curitibanos. Mas oras, para quê mesmo deveriam? Esse encontro singular é mais do que suficiente para que todas as suas vidas tenham valido a pena, pelas histórias transportadas, e mesmo que lembrados unicamente através dessas palavras que cingem os asfaltos do tempo.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O Tamanho da Alma

Tenho a impressão de estar sobrando cada vez mais espaço no interior dessa alma. Talvez ela esteja mesmo aumentando de tamanho, sem se preocupar em elevar o conteúdo. Ou talvez ela esteja simplesmente esvaziando, como uma piscina de quintal - naqueles tons azuis falhos imitadores de oceanos, mas com rosto, cheiro e até mesmo gosto de infância, - contendo um furo imperceptível, o qual nunca conseguimos remendar.

Acredito sermos do tamanho daquilo que carregamos conosco. Do tamanho de nossas bagagens. De nossas angústias, medos, anseios, vontades, culpas, resoluções, e tantos quantos mais substantivos masculinos e femininos, próprios e impróprios, sejam possíveis enumerar. Somos do tamanho de tudo isso.

Pelo peso, tentamos uma vez medir, tentamos uma vez delimitar em convenções humanas. Vinte e um gramas foi o resultado, deveras uma brisa, apenas categoria peso pena nas contendas universais pela vida ou pela morte. Em morte, vinte e um gramas a menos. E uma alma mais à deriva, sem nenhum recipiente a ocupar.

Mas em que tamanho estão espalhados esses vinte e um gramas? Assim, é necessário avaliar qual seria a densidade demográfica da alma. E cogitar também se podemos alimentá-la, melhorando assim sua performance perante os pesados fardos da vida. Forrando o espaço vazio, como forramos nossos sistemas digestórios; como forramos nossas horas com tarefas; como forramos nossas vidas de momentos sequenciais, que buscam todos meramente forrar o vazio de nossas almas.

Para medir o tamanho de nossas almas, não devemos medir por tudo o que tem dentro dela. Mas sim, devemos medir pelo tanto de coisas que ainda cabem. Por tudo o que ainda falta, e pelos substantivos ainda não utilizados. Não se pesa em corpo morto, porque mesmo que se acerte o peso, ela não está mais ali. Se pesa em corpo vivo, em tudo o que fazemos e vivemos. Pois que a alma.. a alma pode ser infinita se assim ela quiser. O desafio é preenchê-la.