quinta-feira, 30 de abril de 2015

Uma Crônica Lírica de Escárnio e Dor

En los abismos de los años transcurridos
Me quedé a vivir peligrosamente
La sangre no me basta
La muerte no me vence

Qual dor dói mais: a das navalhas lacerando a alma, das lâminas afiadas, o aço pontiagudo, giletes incisivas adentrando profundamente essa alma? Ou a porrada na cara, o sangue que verte, a marca arroxeada que não vai passar, o tiro de bala de borracha? A corrente elétrica passando pelas células nervosas para avisar o cérebro de que algo está muito errado, ou o aperto no peito e a vontade retumbante de gritar loucamente?

Já me acostumei há muito tempo a sentir os objetos cortantes invadindo esse lugar abstrato que se encontra dentro de todos nós, mas ninguém sabe exatamente onde fica. Já me acostumei também a ver o meu sangue fluindo, e com isso o conheço muito bem.

Nossa essência não é formada de uma coisa só, somos corpo e alma, e somos ainda mais. Não há como saber qual das dores é mais poderosa, qual incomoda mais e afeta mais a outra parte. E em alguns casos, pode até haver uma conexão entre as dores, mas no geral uma delas sempre dói mais.

A dor que sinto é estimulante. Uma vida é paródia da outra, vivemos em círculo. Somos paródias de nós mesmos. Uma dor é consequência da outra. Elas vêm em círculo também. Ah se meu corpo pudesse gritar! Ah se a minha alma pudesse sangrar!

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Tempo

O universo tem uma maneira curiosíssima de lidar com as coisas, pelo menos até o ponto em que podemos interpretá-lo. Somos criaturas de quatro dimensões, sendo uma delas impalpável, nossa capacidade de entender o que cerca nosso planetinha é limitada demais.

Sabe-se que não é possível calcular com exatidão tanto a velocidade quanto a posição de uma partícula ao mesmo tempo, só podemos ter um desses dados, a leitura de um compromete a própria existência do outro. Se algum dia o ser humano for capaz de saber com precisão velocidade e posição de uma partícula ao mesmo tempo, e eventualmente estender essa capacidade a aglomerados de partículas, seremos capazes de prever o futuro, pois com esses dois simples dados é possível prever exatamente onde essa partícula, ou aglomerado de partículas, estará em qualquer momento vindouro.

Se o aglomerado de partículas for todo o universo, e o ser humano conseguir algum dia calcular isso, poderemos saber com precisão todo o futuro de todo o universo. Assim, essa é uma teoria física que, de certa forma, prevê a existência do destino. Ao sermos capazes de saber onde as partículas estarão, poderemos ser capazes de alterar seus cursos, mas essas alterações são praticadas por partículas, pois que afinal somos amontoados de partículas também. E dessa forma, mesmo essas alterações poderiam ser previstas.

Nossas decisões mais independentes, praticadas no interior de nossas sinapses cerebrais, não são mais do que trocas de informações entre partículas, que, segundo essa teoria, podem ser previstas também. O livre-arbítrio é nada mais que conexão de partículas, e pode ser predito.

O tempo passa. E ainda não podemos prevê-lo, não podemos brincar com ele, alterá-lo. Nada disso é real, amontoados de partículas também. O destino pode nos fazer receber visitas, e escrever poemas épicos que ele já sabia que escreveríamos. Todos nossos amores, ódios, amigos e inimigos, todas as vezes que você já pisou no cocô do cachorro na calçada da frente de casa até hoje, tudo isso, passa como o tempo. E fica para trás. Como uma caixa escondida no fundo do sótão, que você não consegue alcançar, por mais que tente.

E podemos dizer que nossos sentimentos são as únicas coisas que nos conectam aos tempos em que não estamos. A lembrança de algo é a existência daquilo que está no passado e não existe mais. Mas ali naquelas partículas transitando no cérebro, aquilo ainda existe. E viaja no tempo.

Me sinto como a velha árvore que se curva sob a força do vento. Me sinto como aquela caixa do fundo do sótão, nunca alcançada. Ando pelas ruas desertas de madrugada, e me sinto como a lâmpada do poste, que há anos observa a noite consciente de que existe para iluminar o caminho de ninguém. O tempo continua passando, e o cansaço vem chegando. Já não sou mais o mesmo, e ainda não é possível prever aonde está indo o amontoado de partículas que sou.

Se for algum dia possível prever o futuro de todas as partículas, seremos capazes de prever também os desígnios do coração. Não das sístoles e das diástoles, isso é fácil. Mas sim das intenções obscuras do coração, das explosões de oxitocina e dopamina. Será possível prever o amor, a forma de agir do coração apaixonado.

E nem A nem B nem C têm culpa. Aparentemente, a culpa é das partículas. A culpa é do tempo, que corre e movimenta cada partícula. Que gera transmissões cerebrais, e explosões hormonais, e nossas ações e inações, e os amores e desamores.

Mas essa teoria pode estar completamente errada. Podemos nunca ser capazes de prever nada, porque talvez não haja o que prever. Talvez, e só talvez, as sinapses sejam mesmo livres. E nossos amores também surjam sem estarem pré-programados para acontecer. Talvez o tempo e o destino não façam com que as coisas sejam da forma como eles querem, mas apenas deem as cartas, e jogamos com essas cartas como queremos e podemos.

Talvez o universo tenha mesmo essa maneira curiosa de lidar com as coisas. E talvez isso aconteça porque ele também se surpreende com o inusitado, com o que ele não imaginava que aconteceria, e ache isso engraçado. Todas essas memórias. Todos esses amores. Todos esses amontoados livres de partículas. Eu prefiro que seja assim.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Nuvens

Imagine ser mais leve que o ar. Imagine flutuar. Imagine não ter essa constituição física de forma constante. Imagine viajar no azul distante.

No abismo acima da Terra, a imensidão se expande infinita para todos os lados. Mas antes dos confins mais distantes, pairam sobre nossas cabeças essas massas gasosas disformes, brancas e singelas, assustadoras as vezes. Imagine ser um avião, e cruzar essas formas, arrebentá-las e espalhá-las como um valente leão selvagem espalha a manada de zebras na savana. Mas isso não é voar, não se voa sentado confortavelmente dentro de uma caixa de alumínio.

Para voar, é necessário ser mais leve que o ar. Se desprender das amarras terrenas, dos laços intransponíveis que nos prendem ao chão. Quebrar barreiras invisíveis, constituídas de nitrogênio, oxigênio, argônio e gás carbônico. E subir. E depois, talvez até chover, cair e voltar ao curso de antigos rios. Mas ser, enquanto se puder ser, enquanto se puder escolher, ser uma nuvem. E pairar. E flutuar.

Ao subir, e subidos, destacamos sombras de nosso corpos disformes. Somos fumaça, estamos em tudo que é gasoso, e à temperatura certa, tudo é gasoso, tudo flutua ou pode flutuar. Nossa sombra atirada sobre a terra é um vestígio comprobatório de que somos coisas físicas. Voar não é sonhar, é palpável. E chovemos. Talvez seja isso o que de mais belo fazemos. Voar e chover. Cair em deságues, em vertentes, em pluvianices. Toda queda livre é uma vida inteira por si só.

Cobrimos as Luas. Cobrimos os Sóis. Durante o dia, refletimos luz. A noite, somos invisíveis no breu. Mas mesmo não visíveis, cobrimos outras luzes. Por onde anda a minha estrela? Onde está aquela bela Lua? Ainda está lá, com sua auréola argêntea, mas não é vista por trás das nuvens. Tudo o que está por trás dela, no espaço infindável, não é visto por trás das invisíveis nuvens noturnas.

Quando somos nuvens, o céu inteiro é pouco. O mundo inteiro é pouco também. A vida inteira é pouco. Voamos, flutuamos, pairamos no ar, vendo o mundo lá de cima. É tão bom ser nuvem. É tão bom ser leve. É tão bom voar.