Ou ainda: Ensaio Sobre a Memória
Atravesso a vau as grandes correntezas da memória, que se esvaem em imensos rios correndo para os oceanos do tempo. O destino é uma página amassada. Armazeno em minhas masmorras muitas mais lembranças do que deveria, ou gostaria. Tudo que fica para trás de nós, em algum lugar fica guardado, e dizem não ser possível voltar no tempo. A memória é a melhor máquina do tempo.
Certa feita, a minha caverna com as pinturas rupestres me revelou ter o medo
de partir da existência sem deixar nada, sem ter realizado grandes
feitos. Oras, isso é impossível, a própria existência por si é um feito
grandioso. Um feito que invariavelmente deixa marcas indeléveis por onde passa, pois que ao tocar em uma outra existência qualquer, dela fazemos parte para sempre. Ensina um dia algo a alguém, e mesmo que pereça sua existência, enquanto aquele alguém existir, e ensinar o seu algo a outra alguém, ou simplesmente o mantiver, lá estará você. Em aprender a recíproca é verdadeira.
Imaginem que lindo seria poder acessar absolutamente todas as memórias
da humanidade. Tudo o que cada criatura já viu ou sonhou e, inconscientemente,
achou por bem armazenar em seu incomparável arquivo interno. Poderíamos lembrar de tudo o que já aconteceu, de todos os que foram esquecidos, de todos os que nunca são lembrados.
E são coisas como essa as que fazem a vida ter um pouquinho mais de sentido. Talvez seja esse meu único real objetivo na vida (e na morte); mais do que a rua, a selvageria, ou o caos. Não é sobre ter nomes em placas, de forma alguma, que isso fique reservado aos engenheiros da história. Apenas ficar bem acomodado em algumas masmorras já me dá por satisfeito. Receber e entregar cartas. Convites. Fazer parte dessas listas que circulam por aí.
E mesmo depois que corra muito tempo, continuar nessas masmorras. Mesmo que lá no cantinho, como um objeto de decoração velho e desbotado. Mas nunca esquecido. Maior do que a vida e a morte, a memória vence o tempo. Faz com que o que fazemos em vida ecoe na eternidade, como dito outrora. E faz com que tudo o que já foi, continue sendo, mesmo que todas as leis da vida não o permitam. Não ser esquecido é diferente de ser lembrado.
A maior grandiosidade (toda grandiosidade é maior que as pequenezas, mas algumas grandiosidades são maiores que as outras); a maior de todas acontece quando em comunhão entre a memória, as marcas, o tempo, e tanto mais; quando não somos esquecidos. Mas há muito ainda a se dizer, pois que há ainda muito a se lembrar.