Então os dois britânicos (ainda estava encucado com a questão da nacionalidade) começaram a me explicar como funcionava o sistema político do inferno. Logo fiquei sabendo, para minha extrema surpresa, que Lúcifer já não era o diabo há muito tempo. Alguém se cansara de seu nepotismo facilitando as coisas para os primeiros anjos caídos e tentara um golpe de estado. Lúcifer não deixou por menos e contra-atacou, a guerra civil durou um tempo, mas logo se formou um governo de coalizão com representantes das duas frentes para fazer uma transição pacífica para a democracia, a qual todos acabaram concordando que funcionaria melhor ali.
Acabou que o primeiro diabo eleito no inferno foi o próprio Lúcifer. Até que o inferno parecia mesmo com o Brasil! Ele afirmava em sua campanha que já planejava mesmo acabar com a sua monarquia eterna, afinal, foi na luta por representatividade que ele fora expulso do céu lá no início dos tempos.
Fiquei sabendo ainda que qualquer um poderia se candidatar para cargos menores, como o candidato a demônio distrital ali no palanque, e ir subindo dentro do sistema. Surpreendentemente, soube ainda que a corrupção no inferno era praticamente inexistente, graças à política de tolerância zero: quem fosse pego em qualquer crime contra a ordem pública tinha sua pena eterna dobrada.
Na escada que dava para o palanque, vi que o Steinbeck precisava ser contido por alguns seguranças, pois ameaçava invadir o palco. O homem estava embriagado, e pedi ao Tolkien e ao Wells que me ajudassem a resgatá-lo. Wells ainda comentou que aquilo andava cada vez mais frequente desde que o Steinbeck perdera uma votação para demônio regional II, um cargo importante.
Como já havíamos nos entediado da discussão política, e o Tolkien atentou para o fato de que estava quase na hora do poker, saímos dali. Eu tinha uma infinidade de perguntas para fazer para aqueles três, e milhares de assuntos que gostaria de conversar, mas decidi agir normalmente, mesmo sem entender muito bem o que estava acontecendo.
Chegamos ao local do poker e o Bukowski já estava bêbado. Abraçou o Steinbeck e o xingou de filho da puta, o Wells se juntou a eles e voltaram a falar de política. O Saramago pacientemente contava e separava as cartas, sentei ao lado dele e começamos a conversar sobre as particularidades e as origens dos naipes do baralho. Já estavam ali também o Asimov e o Clarke reclamando sobre o atraso que levava para as novidades tecnológicas chegarem ao inferno, e ainda o Hemingway, quieto em um canto bebendo whisky.
Então chegaram juntos o Kundera e o Kerouac, discutindo alto, quase brigando, sobre algum assunto que eu não cheguei a ouvir do que se tratava. Nessa hora o Saramago já discorria sobre as diferenças de textura na gramatura de diversos tipos de papel, e o Veríssimo saiu do banheiro ajeitando o zíper.
Com vários assuntos correndo em paralelo, eu andava de roda em roda em êxtase por estar ali com os meus autores favoritos antes de um importante torneio de poker. O Kerouac me ofereceu uma bebida e aceitei prontamente. O Hemingway andava impaciente e interrompeu a todos dizendo que só faltava o filho da puta do King para o jogo começar e que deveriam ao menos decidir os lugares. O Bukowski mandou o Hemingway tomar no cu e disse que não teria mais paciência com os seus rompantes, Wells e Asimov deram uma de turma do deixa disso e controlaram os ânimos.
Enfim o King chegou fumando um charuto enorme e mandou que todos se sentassem que ele pagaria a primeira rodada. O Saramago se antecipou e já foi tirando as cartas que definiriam as posições onde cada um deveria sentar. Fiquei entre o Clarke e o Kerouac, o botão era o próprio Saramago, o que deixou o Hemingway desconfiado do carteado honesto, small blind era o Asimov e big o Bukowski, em seguida o Hemingway, Kerouac, eu, Clarke, Kundera, Wells, King, Veríssimo, Steinbeck e Tolkien. A mesa estava superlotada, mas não nos importamos.
O jogo transcorreu quase normalmente, as rodadas de bebida eram pagas em turnos pelo King, Kerouac, Wells e pelo Veríssimo, o Bukowski serrava um charuto do Tolkien por mão. Comecei a reparar nos estilos de jogo, o Kundera tinha um estilo mais contido, jogava poucas mãos, parecido com o do Steinbeck, com a diferença que esse sempre fazia apostas altas quando estava em posição, saindo nas outras situações. O Hemingway e o Tolkien já eram mais agressivos, entravam sempre e gostavam de apostar para deixar o adversário sob pressão. O Kerouac era o mais desbocado, jogando o psicológico dos adversários. O Wells sustentava um estilo neutro de jogo, quase sistemático, escolhendo muito bem as mãos que participaria, mas sem fugir muito. Dessa forma também jogavam o King e o Asimov.
Após algumas horas todo mundo já estava meio bêbado, e depois de várias discussões, alguns impropérios e ameaças, o campeão acabou sendo o Clarke. Eu terminei em quinto, atrás ainda do Kundera que foi vice, Asimov em terceiro, e Wells em quarto.
Alguns dos caras queriam iniciar um cash game para correr a madrugada, mas eu senti que precisava ir. Saí meio sem rumo pelo inferno, cambaleando pelas bebidas que haviam me pagado, e com a promessa de que certamente voltaria na semana seguinte para mais um jogo.