quinta-feira, 29 de outubro de 2015

No Inferno - Parte 2

Então os dois britânicos (ainda estava encucado com a questão da nacionalidade) começaram a me explicar como funcionava o sistema político do inferno. Logo fiquei sabendo, para minha extrema surpresa, que Lúcifer já não era o diabo há muito tempo. Alguém se cansara de seu nepotismo facilitando as coisas para os primeiros anjos caídos e tentara um golpe de estado. Lúcifer não deixou por menos e contra-atacou, a guerra civil durou um tempo, mas logo se formou um governo de coalizão com representantes das duas frentes para fazer uma transição pacífica para a democracia, a qual todos acabaram concordando que funcionaria melhor ali.

Acabou que o primeiro diabo eleito no inferno foi o próprio Lúcifer. Até que o inferno parecia mesmo com o Brasil! Ele afirmava em sua campanha que já planejava mesmo acabar com a sua monarquia eterna, afinal, foi na luta por representatividade que ele fora expulso do céu lá no início dos tempos.

Fiquei sabendo ainda que qualquer um poderia se candidatar para cargos menores, como o candidato a demônio distrital ali no palanque, e ir subindo dentro do sistema. Surpreendentemente, soube ainda que a corrupção no inferno era praticamente inexistente, graças à política de tolerância zero: quem fosse pego em qualquer crime contra a ordem pública tinha sua pena eterna dobrada.

Na escada que dava para o palanque, vi que o Steinbeck precisava ser contido por alguns seguranças, pois ameaçava invadir o palco. O homem estava embriagado, e pedi ao Tolkien e ao Wells que me ajudassem a resgatá-lo. Wells ainda comentou que aquilo andava cada vez mais frequente desde que o Steinbeck perdera uma votação para demônio regional II, um cargo importante.

Como já havíamos nos entediado da discussão política, e o Tolkien atentou para o fato de que estava quase na hora do poker, saímos dali. Eu tinha uma infinidade de perguntas para fazer para aqueles três, e milhares de assuntos que gostaria de conversar, mas decidi agir normalmente, mesmo sem entender muito bem o que estava acontecendo.

Chegamos ao local do poker e o Bukowski já estava bêbado. Abraçou o Steinbeck e o xingou de filho da puta, o Wells se juntou a eles e voltaram a falar de política. O Saramago pacientemente contava e separava as cartas, sentei ao lado dele e começamos a conversar sobre as particularidades e as origens dos naipes do baralho. Já estavam ali também o Asimov e o Clarke reclamando sobre o atraso que levava para as novidades tecnológicas chegarem ao inferno, e ainda o Hemingway, quieto em um canto bebendo whisky.

Então chegaram juntos o Kundera e o Kerouac, discutindo alto, quase brigando, sobre algum assunto que eu não cheguei a ouvir do que se tratava. Nessa hora o Saramago já discorria sobre as diferenças de textura na gramatura de diversos tipos de papel, e o Veríssimo saiu do banheiro ajeitando o zíper.

Com vários assuntos correndo em paralelo, eu andava de roda em roda em êxtase por estar ali com os meus autores favoritos antes de um importante torneio de poker. O Kerouac me ofereceu uma bebida e aceitei prontamente. O Hemingway andava impaciente e interrompeu a todos dizendo que só faltava o filho da puta do King para o jogo começar e que deveriam ao menos decidir os lugares. O Bukowski mandou o Hemingway tomar no cu e disse que não teria mais paciência com os seus rompantes, Wells e Asimov deram uma de turma do deixa disso e controlaram os ânimos.

Enfim o King chegou fumando um charuto enorme e mandou que todos se sentassem que ele pagaria a primeira rodada. O Saramago se antecipou e já foi tirando as cartas que definiriam as posições onde cada um deveria sentar. Fiquei entre o Clarke e o Kerouac, o botão era o próprio Saramago, o que deixou o Hemingway desconfiado do carteado honesto, small blind era o Asimov e big o Bukowski, em seguida o Hemingway, Kerouac, eu, Clarke, Kundera, Wells, King, Veríssimo, Steinbeck e Tolkien. A mesa estava superlotada, mas não nos importamos.

O jogo transcorreu quase normalmente, as rodadas de bebida eram pagas em turnos pelo King, Kerouac, Wells e pelo Veríssimo, o Bukowski serrava um charuto do Tolkien por mão. Comecei a reparar nos estilos de jogo, o Kundera tinha um estilo mais contido, jogava poucas mãos, parecido com o do Steinbeck, com a diferença que esse sempre fazia apostas altas quando estava em posição, saindo nas outras situações. O Hemingway e o Tolkien já eram mais agressivos, entravam sempre e gostavam de apostar para deixar o adversário sob pressão. O Kerouac era o mais desbocado, jogando o psicológico dos adversários. O Wells sustentava um estilo neutro de jogo, quase sistemático, escolhendo muito bem as mãos que participaria, mas sem fugir muito. Dessa forma também jogavam o King e o Asimov.

Após algumas horas todo mundo já estava meio bêbado, e depois de várias discussões, alguns impropérios e ameaças, o campeão acabou sendo o Clarke. Eu terminei em quinto, atrás ainda do Kundera que foi vice, Asimov em terceiro, e Wells em quarto.

Alguns dos caras queriam iniciar um cash game para correr a madrugada, mas eu senti que precisava ir. Saí meio sem rumo pelo inferno, cambaleando pelas bebidas que haviam me pagado, e com a promessa de que certamente voltaria na semana seguinte para mais um jogo.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

No Inferno - Parte 1

Quando eu morri, a primeira coisa que fiz no inferno foi procurar os meus escritores favoritos.

O primeiro problema a me preocupar assim que tomei a decisão de fazer isso foi se cada nação teria o seu próprio inferno. Nesse caso, eu encontraria no máximo o Veríssimo, mas então preferiria que ele houvesse mesmo ressuscitado e ficasse apodrecendo em alguma praça.

O inferno brasileiro provavelmente seria repleto de cariocas falando sem parar, e certamente seria governado pelo Getúlio. Haveria uns portugueses sodomizando a população e toda sorte de europeus fodendo as pobres almas brasileiras de alguma forma. Faria um extremo calor sem nunca chover, mas não haveria praias ou sombra, apenas mosquitos por toda a parte, zumbindo e picando todo mundo.

A segunda coisa que me preocupou foi a dificuldade que eu teria em encontrá-los. Eu nunca acreditei nem desacreditei em reencarnação, afinal eu nunca havia morrido (que eu me lembre) para saber sobre isso. Acontece que no caso dela não existir, haveria no mundo muito mais gente morta do que viva, imaginem a superpopulação do inferno em uma perspectiva dessas. Procurar meus autores favoritos seria como procurar o Hemingway em Cuba.

Logo percebi que o inferno estava relativamente vazio. Deveria haver algum tipo de vazão às almas, seja por reencarnação, seja elevando-as ao limbo, paraíso ou qualquer lugar superior. Na verdade, sempre acreditei no conceito de inferno dos antigos gregos: todos vão para lá, independente de índole, não há paraíso com cordeirinhos e leõezinhos andando juntos, nem sujeitos vestidos de branco tocando harpa. Para o diabo com essas concepções. Oras, precisei admitir a possibilidade de eu estar errado.

O problema é que eu não tinha certeza sobre nada. Não teve um filho da puta para me receber e dizer para onde eu deveria rumar, me mostrar as instalações, ou ao menos dizer “olha cara, você vai ficar naquele lago de fogo ali do tormento eterno”. Tudo era muito subjetivo, uns caras queimando aqui, outros carregando pedras enquanto levavam chibatadas ali, alguns outros sofrimentos variados, uma galera sendo enrabada, e, basicamente, era isso.

Até, por um breve momento, achei que eu devesse mesmo era ficar ali parado esperando meu sofrimento supremo. Mas que se fodessem todos os demônios, saí caminhando.

Comecei a perguntar se o local era dividido por nações, castas, raças, origem social, épocas ou qual outro tipo de organização. Ninguém parecia querer me dar muito ouvidos, apesar de todo mundo se entender. Percebi que não se falava português, inglês ou latim, não se falava idioma nenhum, nós simplesmente nos entendíamos.

Depois de alguns minutos, um sujeito decrépito, com a pele totalmente queimada e deteriorada resolveu conversar comigo. O cara parecia estar ali há milênios e andar completamente entediado, mas me disse que não havia nenhuma unidade temporal no inferno. Sofrimento eterno era eterno mesmo, e incontável.

Perguntei se ele havia visto o Bukowski recentemente. Caso eu estivesse errado quanto ao conceito de céu e inferno, aliás, caso todos os gregos estivessem errados, um cara que eu sabia estar naquele lugar era o Bukowski, não havia como ele ter ido para o paraíso. O cara não sabia de quem eu estava falando (mais tarde descobri que ele havia morrido na epidemia da peste negra), mas me informou que havia um lugar onde os literatos se reuniam para jogar poker todas as terças-feiras.

Achei meio contraditório os caras se reunirem às terças-feiras, visto que ninguém dividia o tempo em unidades temporais por ali. Qualquer dia poderia ser terça-feira ou qualquer outra coisa.

Continuei andando e perguntei para alguém que dia era hoje. Uma vez soube da história de um homem que morreu e passou sete anos no cemitério acreditando ainda estar vivo, mas sem entender porque não conseguia sair de lá. Minhas memórias de vida ainda estavam bem intensas, mas não havia como eu ter certeza de que morrera naquele mesmo dia ou há vários séculos.

De qualquer forma, acabei encontrando o Steinbeck na mais pura coincidência: parei para mijar atrás de uma árvore e ele estava lá mijando também. Gritou que a porra da árvore era dele, pedi desculpas e tentei iniciar um diálogo. Saí-me tão bem que acabamos indo ao boteco tomar uma cerveja.

No boteco, o Steinbeck começou falando alto e expondo seu ponto de vista sobre algumas injustiças que ele acreditava estarem acontecendo ali no inferno. Não entendi bem o problema, mas reparei que ele foi ficando mais soturno conforme alguns sujeitos entravam na conversa, concordando e discordando pelo bar.

Subitamente, ele se levantou e saiu. Tentei em vão segui-lo já sabendo que ele iria ao torneio de poker, mas acabei o perdendo de vista no meio da turba. Lá fora, a confusão era maior ainda. Alguém havia montado um palanque em uma praça que ficava bem em frente ao bar e discursava fazendo sua campanha política, concorria ao cargo de demônio distrital.

Reparei com grande alegria no Tolkien e no Wells conversando ali no meio da plateia, junto com a galera. Fui me aproximando devagar para não parecer um fã desesperado, mas os dois me viram e me chamaram pelo nome para que eu me juntasse a eles. Eu estava mesmo com sorte.

Continua...

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Beligerante

Soy como un pajarito
Que perdió las sus alas
Un pajarito sin alas
Ya no puede volare

Será que ainda há quem acredite que o Sol não passa de um disco no céu? Um círculo amarelo no arco do azul infinito, cavalgando como cavalgou sob as rédeas de Apolo, como viajou nas asas de Rá, girando em torno da Terra, planeta estático por excelência. Será que ainda há quem veja o amarelo sem saber que ele é, na verdade, branco? Nessa mistificação tão verdadeira quanto as anteriores, de séculos borrados em documentos antigos, antes das fotografias. O conhecimento é um inseto raro. Ver. Vislumbrar. Surpreender-se com o que aparece como novidade, como verdade absoluta. Toda verdade absoluta é uma mentira que deu errado. Que deu muito errado.

Observo aos meus pés um passarinho ferido. A pequena avezinha anda cambaleante de um lado para o outro, corre assustado e bica um farelo no chão, pula desconcertadamente. Suas asas não servem mais para nada.

Quem nos deu a liberdade de decidir pelo futuro dos outros seres viventes não fazia a menor ideia do que estava fazendo. Poderia pisá-lo, esmagá-lo com meu peso imensamente superior. Isso certamente acabaria com sua angústia. Imagino que ser uma ave e não poder alçar vôo, frequentar as correntes de ar, subverter a gravidade, seja a coisa mais angustiante dentre todas as perniciosas decisões da existência.

Mas não tenho razão alguma para acreditar que ele sofre. Apenas projeto meu suposto tormento em não poder utilizar minhas asas nessa frágil criaturinha. O que a avezinha é capaz de fazer ou não com suas asas, membro que eu não possuo, é uma situação com a qual ela está preparada para lidar, muito mais do que eu.

Quem dera eu desenvolvesse asas. Gostaria que elas nascessem durante uma noite mal dormida, na qual uma dor na lombar incomodaria e prejudicaria o sono. Pela manhã, eu acordaria e me examinaria no espelho, contorcendo meu corpo para tentar entender a estranha sensação que parece se arraigar desde meus pulmões, atravessando a minha pele.

Oras, são asas! Mas de que elas me serviriam? Meu corpo é pesado e, tal qual as avestruzes e emas, tal qual o miserável passarinho pulando assustado no solo, eu nunca poderia voar.

De vez em quando, tento olhar diretamente para o Sol. Desafio a mim mesmo nessa batalha que não permite vitória. Desejo queimar as minhas retinas, nunca mais enxergar, desenvolver meus outros sentidos e passar as próximas décadas contando para todos sobre a maior batalha que já travei. E perdi.

O lusco-fusco é o resultado do melhor horário do dia. Já não é mais dia, mas ainda não é noite, a melhor luz que existe. O Sol, por um efeito de distorção óptica, já está abaixo da linha do horizonte, mas ainda o vemos. Em alguns dias, ele fica tingido de um vermelho muito mais forte, como as estrelas gigantes que estão morrendo. Nesses dias é possível olhar diretamente para o Sol sem perder a visão. O disco vermelho desce lentamente. O que ele faz também é uma espécie de voar.

Abaixo do Trópico de Capricórnio não existe zênite. Nunca pude cumprir mais um dos meus desejos: o de não ter sombra. Nossos antepassados deram os nomes às constelações. Fico pensando se eu houvesse pisado aquele passarinho que não podia voar, será que eu seria capaz de transformá-lo em constelação?

Quero vislumbrar todo o resplendor da tua beleza. Mesmo que ceguem meus olhos e eu nunca mais nada veja. Não acho que seja como olhar para o Sol, ou como na história de Sêmele, que exigiu que Zeus aparecesse para ela em toda sua resplandecência. Sêmele nunca mais nada viu.

Não me importo em nunca mais enxergar se a minha última visão, a última memória de impulsos luminosos atravessando a minha retina seja você. Quero ver a curvatura das tuas costas, pontilhada de pequenas e retilíneas elevações vertebrais quando relaxada; uma depressão margeada por um primeiro planalto das omoplatas e por dois sensíveis morros glúteos quando contraída. Quero ver você de frente, seus seios intumescidos caracterizando em forma e tamanho o complemento perfeito para minhas mãos côncavas. Quero ver os teus ralos pelos se eriçarem ao toque da minha pele, se agitarem com a emanação de calor de um corpo em contato com outro corpo. Quero ver todos os detalhes da tua pele, escrutinar cada centímetro quadrado do invólucro da tua bela alma.

Eu nunca soube para onde ir. Nunca soube como te levar. Andei te arrastando por diversos caminhos obscuros, te levando para um lado e para o outro sem destino.

Não quero aprender. Não quero regras de conduta e de condução. Não quero passos ensaiados para a nossa dança. Quero te levar sem rumo. E, se perdermos a visão, ou que eu a perca, vamos tateando, arrastando os pés no chão para evitar os buracos da calçada. Vamos procurando os rumos com o esforço e a dedicação de quem nunca precisou ser guiado.

Como também não precisei guiar o passarinho, não precisei pisoteá-lo. Não tenho esse direito. Posso levá-la, isso eu posso, se você quiser ir.

Posso me sentir só mesmo tendo-a comigo. A solidão está muito mais associada a um estado de espírito do que a companhias. Depois de nascidas as minhas asas eu tentaria voar, não há como dizer que não. Mas fui feito para caminhar sobre a terra, para evitar os buracos da calçada. Acredito que o passarinho pisaria em mim se tivesse a oportunidade e sentisse a necessidade.

Ainda quero ver todo o resplendor da tua beleza. Ainda quero te levar para voar com essas asas recém desenvolvidas. Sem rumo mesmo, por aí, pela noite, ou rumo ao Sol. Olhando para onde quisermos olhar, para o brilho que nos apetecer, para o tipo de luz que pouco importa cegar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Relatividade do Espaço

O isolamento e a aproximação que cada um necessita são variáveis. A distância. O toque. O beijo. O olhar.

São também variáveis no tempo. Constância é uma palavra inconstante. O tempo é relativo, mas disso todo mundo já falou. O tempo-espaço como conceito absoluto é uma coisa alternativa. Falemos de altura, largura e comprimento, o espaço como sempre foi, antes da física quântica.

O espaço entre dois corpos só pode ser alterado pela quebra da lei da inércia. É o que chamamos de atitude. Atitude é uma violação às leis da física. Assim, o universo parece cada vez mais contraditório.

Um dia desses, quase amanheci em queda livre. Parei para ouvir as aves que cantavam em meu peito. Pássaros de pedra em nosso mundo de luz e concreto armado. Se o chão é artificial, acho que deveríamos permanecer no céu. E voar e voar e voar.

Quantos metros? Quilômetros? O espaço é relativo. Um salto de fé é também um mergulho no abismo. Olho de cima do palco, e os poucos centímetros que me afastam do chão são também anos-luz.

Ninguém entende porque esse homem grita. Talvez haja espaço demais dentro dele. Mas é assim mesmo que as coisas são, a distância entre nós é variável. O tudo de alguns é um tanto de nada. Nada para outros já é muito. Longe... Perto... Não faz diferença.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Sobre a Estética da Vida e da Morte que nos Aguarda

É natural que queiramos planejar o futuro. Somos a primeira espécie que possui capacidade de pensar o tempo de maneira analítica a povoar esse planeta. Aliás, inventamos o tempo, portanto somos capazes de pensá-lo como quisermos. Pensamos no passado e no futuro. Conjugamos malditos verbos. Quem liga para o subjuntivo do pretérito? Pensamos demais. É natural, mas isso não significa que é certo.

As pessoas da minha idade deveriam todas estar morrendo. Não se preocupando em acumular matéria física à sua volta, objetos que orbitem à sua massa irrelevante, para que quando finalmente morram, daqui a quatro ou cinco décadas, deixem tudo para que seus herdeiros deixem tudo para seus herdeiros. O que todos esquecem é que o ser humano não nasceu para viver. Nasceu para morrer. Rápido. Antes dos 30.

Gosto de passar minhas horas com quem me faz boa companhia. Um café da manhã antes do trabalho. Uma maluquice extrema pelas ruas na madrugada. Uma tarde de sábado na grama. Um almoço com cara de jantar em um domingo do contrário natimorto. Conversas que são apenas por serem, sem mais explicações. Coisas que passamos a apreciar melhor com a maturidade dos anos.

De uns anos para cá, tenho visto mais beleza nas coisas. Meu senso e padrão estético se tornaram menos rigorosos. Acho que é assim mesmo, a gente vai vivendo mais e as coisas vão ficando mais bonitas. A vida e as pessoas vão ficando mais bonitas. Outro dia, descobri que em uma das luas de Júpiter há mais água do que em toda a Terra. Quem poderia subestimar a superioridade daquele mundo ínfimo e infinito? Infinito porque nunca chegaremos a conhecê-lo. Nem em dez gerações.

É coisa de um ser humano que se aproxima de sua morte. Aproximar é um de nossos verbos que possui conjugação para as quatro dimensões hoje conhecidas. Podemos nos aproximar tanto no espaço quanto no tempo. Tornamo-nos próximos de nossas mortes, mesmo que ela já não chegue mais tão cedo. As pessoas da minha idade deveriam estar morrendo. Não se preocupando com a conta não paga; com o cachorro do vizinho; a chuva do final de semana; ou o senso estético dessa porcaria toda.

Tenho sentido falta de escrever. Tenho sentido falta de amar. O que posso fazer? São meus vícios. Não é possível viver sem eles. Continuamos nos movendo. É o óbvio. É o que precisamos fazer para não morrer qualquer dia com a cara na calçada enlameada pela chuva de início de uma noite de primavera. De toda maneira, parece que passamos mais tempo nos preocupando em não morrer do que em viver. Reitero: as pessoas da minha idade já deveriam estar todas mortas.