Soy como un pajarito
Que perdió las sus alas
Un pajarito sin alas
Ya no puede volare
Será que ainda há quem acredite que o Sol não passa de um disco no céu? Um círculo amarelo no arco do azul infinito, cavalgando como cavalgou sob as rédeas de Apolo, como viajou nas asas de Rá, girando em torno da Terra, planeta estático por excelência. Será que ainda há quem veja o amarelo sem saber que ele é, na verdade, branco? Nessa mistificação tão verdadeira quanto as anteriores, de séculos borrados em documentos antigos, antes das fotografias. O conhecimento é um inseto raro. Ver. Vislumbrar. Surpreender-se com o que aparece como novidade, como verdade absoluta. Toda verdade absoluta é uma mentira que deu errado. Que deu muito errado.
Observo aos meus pés um passarinho ferido. A pequena avezinha anda cambaleante de um lado para o outro, corre assustado e bica um farelo no chão, pula desconcertadamente. Suas asas não servem mais para nada.
Quem nos deu a liberdade de decidir pelo futuro dos outros seres viventes não fazia a menor ideia do que estava fazendo. Poderia pisá-lo, esmagá-lo com meu peso imensamente superior. Isso certamente acabaria com sua angústia. Imagino que ser uma ave e não poder alçar vôo, frequentar as correntes de ar, subverter a gravidade, seja a coisa mais angustiante dentre todas as perniciosas decisões da existência.
Mas não tenho razão alguma para acreditar que ele sofre. Apenas projeto meu suposto tormento em não poder utilizar minhas asas nessa frágil criaturinha. O que a avezinha é capaz de fazer ou não com suas asas, membro que eu não possuo, é uma situação com a qual ela está preparada para lidar, muito mais do que eu.
Quem dera eu desenvolvesse asas. Gostaria que elas nascessem durante uma noite mal dormida, na qual uma dor na lombar incomodaria e prejudicaria o sono. Pela manhã, eu acordaria e me examinaria no espelho, contorcendo meu corpo para tentar entender a estranha sensação que parece se arraigar desde meus pulmões, atravessando a minha pele.
Oras, são asas! Mas de que elas me serviriam? Meu corpo é pesado e, tal qual as avestruzes e emas, tal qual o miserável passarinho pulando assustado no solo, eu nunca poderia voar.
De vez em quando, tento olhar diretamente para o Sol. Desafio a mim mesmo nessa batalha que não permite vitória. Desejo queimar as minhas retinas, nunca mais enxergar, desenvolver meus outros sentidos e passar as próximas décadas contando para todos sobre a maior batalha que já travei. E perdi.
O lusco-fusco é o resultado do melhor horário do dia. Já não é mais dia, mas ainda não é noite, a melhor luz que existe. O Sol, por um efeito de distorção óptica, já está abaixo da linha do horizonte, mas ainda o vemos. Em alguns dias, ele fica tingido de um vermelho muito mais forte, como as estrelas gigantes que estão morrendo. Nesses dias é possível olhar diretamente para o Sol sem perder a visão. O disco vermelho desce lentamente. O que ele faz também é uma espécie de voar.
Abaixo do Trópico de Capricórnio não existe zênite. Nunca pude cumprir mais um dos meus desejos: o de não ter sombra. Nossos antepassados deram os nomes às constelações. Fico pensando se eu houvesse pisado aquele passarinho que não podia voar, será que eu seria capaz de transformá-lo em constelação?
Quero vislumbrar todo o resplendor da tua beleza. Mesmo que ceguem meus olhos e eu nunca mais nada veja. Não acho que seja como olhar para o Sol, ou como na história de Sêmele, que exigiu que Zeus aparecesse para ela em toda sua resplandecência. Sêmele nunca mais nada viu.
Não me importo em nunca mais enxergar se a minha última visão, a última memória de impulsos luminosos atravessando a minha retina seja você. Quero ver a curvatura das tuas costas, pontilhada de pequenas e retilíneas elevações vertebrais quando relaxada; uma depressão margeada por um primeiro planalto das omoplatas e por dois sensíveis morros glúteos quando contraída. Quero ver você de frente, seus seios intumescidos caracterizando em forma e tamanho o complemento perfeito para minhas mãos côncavas. Quero ver os teus ralos pelos se eriçarem ao toque da minha pele, se agitarem com a emanação de calor de um corpo em contato com outro corpo. Quero ver todos os detalhes da tua pele, escrutinar cada centímetro quadrado do invólucro da tua bela alma.
Eu nunca soube para onde ir. Nunca soube como te levar. Andei te arrastando por diversos caminhos obscuros, te levando para um lado e para o outro sem destino.
Não quero aprender. Não quero regras de conduta e de condução. Não quero passos ensaiados para a nossa dança. Quero te levar sem rumo. E, se perdermos a visão, ou que eu a perca, vamos tateando, arrastando os pés no chão para evitar os buracos da calçada. Vamos procurando os rumos com o esforço e a dedicação de quem nunca precisou ser guiado.
Como também não precisei guiar o passarinho, não precisei pisoteá-lo. Não tenho esse direito. Posso levá-la, isso eu posso, se você quiser ir.
Posso me sentir só mesmo tendo-a comigo. A solidão está muito mais associada a um estado de espírito do que a companhias. Depois de nascidas as minhas asas eu tentaria voar, não há como dizer que não. Mas fui feito para caminhar sobre a terra, para evitar os buracos da calçada. Acredito que o passarinho pisaria em mim se tivesse a oportunidade e sentisse a necessidade.
Ainda quero ver todo o resplendor da tua beleza. Ainda quero te levar para voar com essas asas recém desenvolvidas. Sem rumo mesmo, por aí, pela noite, ou rumo ao Sol. Olhando para onde quisermos olhar, para o brilho que nos apetecer, para o tipo de luz que pouco importa cegar.
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