segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Reparar


Reparar é parar uma segunda vez, é consertar, e é também notar. Notar não é avaliar, atribuir nota; é apenas reparar, consertar a visão, prestar atenção, e perceber o que não se vê. Ninguém repara no que não se repara. Nos consertamos para ser reparados, notados e atribuídos valores. Paro e reparo, e rerreparo. Está tudo parado, e não consigo não reparar nesses consertos exagerados. Sou uma pessoa irreparável. Em todos os seus significados.

Nos conformamos com a vida. Aos poucos vamos aceitando as suas arbitrariedades. A realidade é uma abstração. A vida escapa às mãos, desce como areia fina. Machuca, dói quando ela voa e se distancia. Abstração arbitrária. Todas essas aliterações cansam, mas não deixam nunca de ser necessárias. Paro e reparo, e há uma linha extremamente tênue entre o sim e o não, entre o dia e a noite, entre ver e reparar.

E a aura da manhã carrega um peso a mais do que o resto do dia. Como uma necessidade de ser tudo o que ela puder, de viver intensamente o curto período que existe antes que o Sol e o mundo desistam do acordo selado entre o horizonte e os fugidios raios da aurora. A aura da aurora é a linha tênue entre o sim e o não. Não podemos deixar de reparar a aurora, de aproveitar esse mundo vibrante de abstrações e arbitrariedades.

J'aurais pu vous pris au ciel
Mais vous choisissez l'enfer

É o que fazemos sempre.

Nenhum comentário:

Postar um comentário